Rompendo o arame farpado: os nipo-americanos e a memória da Segunda Guerra Mundial

Como as lembranças de um período conturbado para a comunidade de ascendência japonesa nos EUA ajudam a entender uma importante questão: a elaboração do trauma através da escrita biográfica.
16 de setembro de 2024
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Ordem Executiva 9066 que levou ao encarceramento de mais de 120.000 pessoas de ascendência japonesa em campos de concentração dos EUA. Foto: 94.1

A alguns metros de distância do Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, está localizado o National Japanese American Memorial. Inaugurado em 2001, o memorial foi construído com para homenagear a população nipo-americana do país, que durante a Segunda Guerra Mundial foi removida em massa da Costa Oeste e encarcerada de maneira arbitrária nos chamados “campos de internamento”, e para exaltar os nipo-americanos que lutaram durante o conflito.

De tudo que compõe esse lugar de memória, o que mais chama atenção é uma escultura de bronze de quatro metros de altura. A escultura, que possui autoria da artista Nina Akamu, representa duas aves de espécie grou-japonês com asas levantadas e contraídas contra seus corpos, estando ainda cercadas por um fio de arame farpado. O arame farpado faz clara alusão às cercas que envolviam os arredores dos campos de internamento. Os dois pássaros presentes na escultura bicam o arame farpado, indicando o desejo de se soltarem das cercas que os rodeiam e comprimem os seus corpos. A escultura apresenta as ideias de esforço individual e coletivo, busca por liberdade, superação de ignorância e preconceitos.

Inaugurado em 2001, o National Japanese American Memorial, com todos os elementos artísticos e arquitetônicos que o compõem, pode ser visto como um dos desfechos de um longo movimento de reparação pelas injustiças sofridas pela comunidade nipo-americana durante a Segunda Guerra Mundial, movimento esse que se desenvolveu na década de 1970 e reuniu ativistas políticos, movimentos sociais, acadêmicos, entre outros segmentos da sociedade. Essa mobilização possibilitou com que o governo norte-americano reconhecesse a ilegitimidade do aprisionamento dos cidadãos de ascendência japonesa em 1942 e as motivações racistas que levaram à decisão. Mas nada disso seria possível sem o empenho da comunidade nipo-americana em rememorar as suas histórias de aprisionamento.

De Pearl Harbor a Executive Order 9066

O ataque à base militar de Pearl Harbor, no Havaí, no dia sete de dezembro de 1941, por aeronaves imperiais japonesas, desencadeou um processo que levaria a perseguição contra japoneses ou descendentes de japoneses que viviam nos Estados Unidos. O ataque foi o resultado de uma tensão entre os Estados Unidos e o Japão que existia desde o início do final do século XIX em torno da hegemonia da região do Pacífico. Depois do ataque de 1941, os EUA declararam guerra ao Japão e entrasse oficialmente na guerra ao lado dos Aliados.

A comunidade nipo-americana foi vítima de perseguições manifestadas por diferentes segmentos da sociedade. O sentimento antinipônico que já existia, se intensificou. A imprensa publicou notícias sensacionalistas contra essas pessoas, acusando-as de espionagem e colaboracionismo com o Império do Japão, o que causou grande histeria entre a população. Mas o que foi realmente decisivo para o futuro encarceramento em massa da comunidade nipo-americana foi as discussões entre as autoridades governamentais e militares.

As autoridades militares americanas alegaram que a Costa Oeste (região com maior concentração de japoneses e descendentes) era uma zona de estratégia militar, de modo que seria necessário a retirada de “possíveis ameaças” à segurança nacional da localidade. Essa justificativa foi materializada no Decreto 9066 (Executive Order 9066, em inglês), promulgado pelo presidente Franklin D. Roosevelt em 19 de fevereiro de 1942. Não havia nada que comprovasse um perigo real dos nipo-americanos para a segurança nacional, mas a histeria e o preconceito foram mais fortes. O Musson Report, um estudo governamental realizado em 1941, comprovou que essa comunidade não apresentava nenhum risco para o país em um contexto de guerra contra o Japão. Por

Entre arame farpado e torres de vigia: os Campos de Internamento

Ao longo de fevereiro de 1942, após a publicação do Decreto 9066, se intensificou o processo de remoção massiva dos japoneses e nipo-americanos da Costa Oeste. Pouco a pouco as pessoas de ascendência nipônica na região saíram de suas casas. Eles não puderam levar nada além de alguns pertences. Algumas famílias nunca mais iriam retornar para seus lares, uma vez que perderam suas residências e posses em meio ao caos do processo de remoção.

Inicialmente, essas pessoas feitas prisioneiras foram levados aos Assembly Centers, “centros de realocação” temporários. Em seguida, foram conduzidas para os campos de internamento definitivos. Houve cerca de dez Relocation Centers (Gila River, Granada, Heart Mountain, Jerome, Manzanar, Minidoka, Topaz, Tule Lake, Poston e Rohwer) espalhados pela Costa Oeste. Esses espaços de confinamento eram administrados pela War Relocation Authority (WRA), um órgão do governo responsável pela condução de todo o processo de remoção e encarceramento dos nipo-americanos. Os Campos de Internamento temporários e definitivos tinham estruturas semelhantes. Eles eram cercados por arames farpados e torres de vigilância. Eram compostos por vários barracões e espaços comunais destinados aos prisioneiros.

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Uma menina detida no Arkansas caminha para a escola em 1943. Foto: Tom Parker.

A imagem das “cercas de arame farpado” dos campos se tornou um tipo de símbolo na memória coletiva a respeito do encarceramento dos japoneses. Ela é usada, por exemplo, em algumas memórias escritas pelos ex-internos. Mary Matsuda Gruenewald, uma ex-interna, em seu livro autobiográfico Looking Like the Enemy: My Story of Imprisonment in Japanese American Internment Camps, usa as “cercas de arame farpado” como uma figura de linguagem para expressar o fato de ter suprimido as lembranças de seu internamento por vários anos, antes de decidir escrever sobre sua experiência de aprisionamento.

As narrativas autobiográficas de nipo-americanos, como as de Mary Matsuda Gruenewald, permitem uma melhor compreensão de vários aspectos do processo de encarceramento. Entre eles, pensar sobre o dia a dia nesses espaços e as situações que os internos passavam diariamente. A falta de privacidade e conforto, a escassez de atividades para se ocuparem, a má alimentação e os atos de violências eram algumas das dificuldades que enfrentaram durante os anos de confinamento. A partir do relato Matsuda, entende-se que, longe de casa e submetida a esse contexto opressivo, artificial e destituído de sentido dos campos, ela teve a “suspensão” de sua existência, acompanhada de uma intensa crise de identidade em relação ao seu lugar na sociedade. Estagnação, inércia, incertezas, angústias, são o que marcam a sua experiência de aprisionamento, bem como a de tantos outros nipo-americanos que foram vítimas da repressão.

Quebrando o silêncio: a escrita como memória e testemunho

Em parte da literatura (historiografia, autobiografias/memórias) sobre o encarceramento dos nipo-americanos na Segunda Guerra Mundial, é mencionado um suposto “silêncio” que recaiu sobre uma parcela dos ex-internos em relação à experiência de confinamento após serem liberados em 1945, no final da guerra. Diferentes razões explicariam esse fenômeno, por exemplo, os estigmas que os circundavam no pós-guerra, desejo de esquecer o evento traumático e seguir com a vida normalmente, entre outros. Ocupando o lugar dessas vozes, uma visão “oficial” sobre o processo de encarceramento teria sobressaído, vendo-o por um viés positivo.

Essa visão seria contraposta mais intensamente a partir da década de 1970, em um contexto político marcado pelo movimento de direitos civis e movimentos de orgulho étnico e racial. Nesse contexto, algumas obras foram significativas para a ressignificação do internamento da comunidade nipo-americana, como o livro Years of Infamy da ativista Michi Weglyn. Publicado em 1976, o trabalho foi resultado de um retorno da autora aos documentos presentes no National Archives, Library of Congress e do Pentágono sobre o encarceramento. Essa e outras obras de historiadores, acadêmicos e pesquisadores, possibilitaram revelar informações que outrora foram encobertas ou ignoradas sobre o evento. A questão do internamento começou a ser vista, então, a partir de uma nova perspectiva (como uma ação arbitrária, ilegítima e inconstitucional, motivada, principalmente, por preconceito racial). Incentivaram um movimento de busca por reparação e reconstrução da memória sobre o evento.

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O presidente Gerald Ford assina uma proclamação confirmando o término da Ordem Executiva 9066 (19 de fevereiro de 1976). Foto: William Fitz-Patrick – Administração Nacional de Arquivos e Registros dos EUA.

Em meio a busca por reparação, houve também um exercício de resgate das memórias dos ex-prisioneiros nipo-americanos. Muitos se sentiram, pela primeira vez, encorajados e confiantes para compartilhar suas lembranças dos anos de guerra. Uma boa parte dessas memórias foram coletadas por via oral, o que contribuiu para que até metade da década de 1990 a experiência do internamento nipônico se tornasse um dos eventos históricos mais bem documentados por meio de entrevistas nos Estados Unidos. Entretanto, essas memórias não só vieram por meio da fala, mas também da escrita. Alguns decidiram contar suas histórias escrevendo narrativas autobiográficas. Uma dessas narrativas de maior repercussão tratou-se da obra Farewell To Manzanar (1973), da escritora Jeanne Wakatsuki Houston. A narrativa expõe as lembranças da autora de antes, durante e após seu encarceramento, destacando os efeitos que o processo de aprisionamento acarretou para ela e sua família. A obra de Houston teria inspirado e influenciado outros indivíduos escrevessem sobre suas próprias experiências.    

Essas e tantas outras memórias possibilitam a melhor compreensão do evento histórico a que se referem e foram/são significativas para a criação, manutenção e ampliação de uma “memória coletiva”, evidenciando a importância delas. Essas produções são relevantes por serem a reflexão das próprias vítimas sobre a experiência traumática a que foram submetidas.

Referências Bibliográficas

ABOUT the Memorial – NJAMF. National Japanese American Memorial Foundation. Disponível em: <https://www.njamemorial.org/new-page-1>. Acesso em: 31/07/2024.

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GRUENEWALD, Mary Matsuda. Looking like the enemy: My story of imprisonment in Japanese-American internment camps. Troutdale, OR: NewSage Press, 2005.

HASTINGS, Emiko. “No longer a silent victim of history:” repurposing the documents of Japanese American internment. Archival Science, v. 11, p. 25-46, 2011.

NG, Wendy. Japanese American Internment During World War II: A History and Reference Guide. Westport, Connecticut: Greenwood Press, 2002.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Trad. Monique Augras. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212. 1992

ROBINSON, Greg. A Tragedy of Democry: Japanese Confinement in North America. Chichester, NY: Columbia University Press, 2009.

Como citar este artigo

ATANARIO, Misael Sousa. Rompendo o arame farpado: os nipo-americanos e a memória da Segunda Guerra Mundial (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/memoria-japonesa-segunda-guerra-mudial-eua/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 16 Set. 2024.

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Misael Sousa Atanario

Graduando em História pela Universidade de Brasília (UnB). Tem interesse na área de História Contemporânea, com enfoque nos seguintes temas: "escritas de si", memória, testemunho, trauma, relação Literatura e História. Escreve para o Café História sob a supervisão acadêmica de Bruno Leal (UnB).

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