Traduzido do japonês, Shōgun era o título dado aos regentes militares, no caso os samurais, que mantiveram o controle sobre o Japão entre os anos 1185 e 1868. O autor e roteirista britânico-americano James Clavell baseou seu best-seller de 1975, também chamado Shōgun, nas experiências reais do navegador William Adams durante o século XV em sua jornada pelo Oriente. Adams chegou ao Japão em 1620 enviado pelos holandeses em missão comercial e acabou entrando para a história por se tornar o único samurai com origem ocidental na época. O livro faz parte de uma série de seis romances sobre a cultura asiática escritos por Clavell ao longo de sua vida.
As mais de mil páginas de Shōgun já passaram por uma adaptação para a televisão em forma de uma mini-série em 1980. O papel do protagonista caucasiano John Blackthorne, apelidado pelos japoneses de Anjin (o piloto), foi assumido na época por Richard Chamberlain. O “samurai dos olhos azuis” – que também é título de uma animação franco-americana para adultos de 2023 – recebia com ele sua primeira roupagem cinematográfica. Porém, desde então, muitos projetos foram discutidos, mas ninguém parecia encontrar o tom certo para uma refilmagem de qualidade do volumoso material em questão – a saga de um ocidental que sucumbe aos encantos da placidez, honra, coragem e lealdade incorporadas pelos guerreiros japoneses da época.
A tarefa árdua do remake iniciou em 2018, e entre os maiores desafios estava a língua. Originalmente os personagens deveriam se comunicar apenas em português e japonês, já que a época, em meados de 1600, o Japão sofria com a tentativa de dominação católica por colonizadores portugueses. Para “descomplicar”, os produtores norte-americanos do canal FX Network decidiram por substituir o português pelo inglês, mas mantiveram o japonês, assim como não renunciaram a um elenco majoritariamente composto por asiáticos para os papéis do povo do Japão. Isso de cara já deu à obra uma seriedade bastante bem-vinda.
Shōgun não é uma série para os fracos de coração, apesar do seu ritmo lento e paisagens contemplativas, ela não nos poupa de detalhes escatológicos e sangrentos de rituais do Japão feudal como o Seppuku – método pelo qual samurais que caíam em desgraça cometiam suicídio por um corte abdominal que expunha suas vísceras enquanto ainda respiravam até que um companheiro selecionado o decapitasse com uma espada pondo fim ao seu sofrimento. Não foi à toa que o diretor de ação Frederick E.O. Toye (The Boys – 2019) acabou sendo o escolhido para dirigir quatro dos dez episódios.
Já nas primeiras cenas presenciamos o estado físico e mental de navegadores europeus que ficaram meses à deriva entre vida e morte, desidratados e com escorbuto. É nesse momento, com a chegada da navegação europeia às margens japonesas que a saga de Anjin Blackthorne tem início. Dessa vez o escolhido para interpretar o personagem “estranho no ninho” foi o ator e músico britânico Cosmo Jarvis (Persuasion – 2022), que fez uma boa interpretação do bruto anglo-saxão de origem humilde confrontado com todos os rituais e etiquetas da sociedade japonesa de 1600. Com exceção – e isso precisa ser infelizmente dito – as lentes azuis que ao invés de clarearem seus olhos castanhos os deixaram com um aspecto de catarata e lhe tiraram parte expressão necessária ao drama. Anjin, o bárbaro, se encontra no olho do furacão quando os representantes do conselho das grandes famílias que controlavam o Japão da época acabam entrando em atrito. Mestre Toranaga, interpretado de forma sensacional por Hiroyuki Sanada, resolve iniciar uma revolta contra o domínio de Ishido Kazunari (Takehiro Hira) sobre as decisões do conselho e combater a permissividade de mestres corruptos que se aliaram aos portugueses invasores em alianças comerciais ou que se converteram ao catolicismo. Toranaga se interessa por Anjin, em parte pelos canhoes e armas que esse trazia em seu navio, mas também por sua cultura completamente alienígena aos costumes japoneses. Por meio da tradutora Mariko (Anna Sawai) Toranaga e Anjin se tornam próximos e trocam experiencias ao ponto de Anjin se tornar um dos guerreiros do exército de Toranaga ao lado de outros samurais como o anti-herói Kashigi Yabushige (Tadanobu Asano). Entre Mariko e Anjin se desenvolve um romance sutil e silencioso, uma conexão quase espiritual, mas que não extrapola as normas sociais da época e o catolicismo de Mariko, que em sua conversão foi rebatizada como Maria pelos padres portugueses.
Shōgun é uma obra que se desenvolve lentamente, temos poucos diálogos – em parte devido às dificuldades da língua entre os personagens – mas muitos sentimentos que afloram aos poucos, assim como o decorrer de um longo inverno em rumo a primavera. Cenas poéticas e de beleza incrível nos são brindadas a todos os momentos por uma cenografia impecável. As cenas de luta e de guerra são o contraste necessário para nos sacudir da placidez dos tempos de paz, são cenas sangrentas ao extremo, em tempos que as lutas eram travadas quase que somente na ponta de uma espada com fio impecável. Esse contraponto, por mais que contrastante, é parte da fascinação de uma obra que trata de tempos em que conflitos sangrentos faziam parte da rotina de muitos povos ao redor do mundo. Uma produção primorosa e interpretações excepcionais são as cerejas do bolo.
Os dez episódios da primeira temporada de Shōgun estão disponíveis para assinantes do canal de streaming Disney Plus (Star Plus) no Brasil.