Faz tempo que o debate sobre a natureza do Holocausto tira o sono de muitos pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas, do direito à ciência política, passando pela história: teria sido o assassinato em massa de judeus pelos nazistas um evento único e singular na história? Ou teria sido ele um evento comparável e até recorrente na história, uma espécie de lugar-comum que nos ajudaria a compreender outros genocídios?
Esse debate historiográfico nos ajudou a compreender muita coisa, desde micropolítica até o conceito de genocídio e a compreensão da natureza do mal. Mas é preciso reconhecer que ele expõe outro elemento muito importante: os usos políticos do passado.
Holocausto
Embora o termo Holocausto tenha aparecido nos anos finais da guerra, em textos de sobreviventes judeus, seu uso mais comum na literatura e na academia, especialmente ao se referir à especificidade do evento, só se popularizou no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Isso ocorreu como substituição ao termo genocídio, que era mais genérico e descritivo, como observado pelo historiador britânico Ian Kershaw.
Nessa mudança estava embutida a tentativa de capturar a singularidade da explicação quase “sagrada” da brutalidade dos eventos, do mal absoluto e do destino “especificamente judeu”, como destacado por George Mosse. Assim, quando debatemos hoje se estamos falando de Holocausto, Churban ou Shoá (outras formas de se referir ao Holocausto), não estamos apenas discutindo a definição de termos; mas estamos explorando a singularidade inerente a cada um deles. Daí, a criação de conceitos específicos.
Segundo o historiador Yehuda Bauer, a única maneira de aplicar definições e generalizações é através da comparação. Sua análise incide sobre o que ele denominou de “elementos sem precedentes” do genocídio. Existe uma conexão frequente entre os genocídios e o fenômeno da guerra quando se busca explicações para o assassinato coletivo de minorias étnicas. No entanto, reduzir esse entendimento às motivações políticas e até mesmo às estratégias e táticas militares é, no caso do Holocausto, por exemplo, considerar que ele iniciou apenas com a Operação Barbarosa de 1941, e não com as políticas progressivas de exclusão dos judeus e de outras minorias da Alemanha.
Para Bauer, um dos primeiros historiadores a escrever um texto acadêmico sobre o Holocausto no início dos 1950, há uma grande diferença entre o Holocausto e outras formas de genocídio. Para Bauer, os genocídios seriam explicados (e motivados) por duas categorias de elementos: “considerações pragmáticas” (por exemplo: o povo x precisa ser destruído porque preciso da terra dele) e “motivos ideológicos abstratos” (por exemplo: o povo x precisa ser destruído porque ele se comporta de forma que ameaça a minha identidade). O Holocausto seria um genocídio diferente de todos os outros porque teria colocado os “motivos ideológicos abstratos” acima das “considerações pragmáticas”. Isso explicaria, por exemplo, porque, para muitos nazistas, era importante mobilizar tantos recursos militares contra os judeus mesmo nos momentos mais críticos da guerra.
Bauer afirma que o Holocausto foi uma forma “extrema de genocídio” e explica que o sentido do “extrema” estaria relacionado ao caráter ideológico, global e total do genocídio, sendo esses os fatores que o tornariam “inéditos”. Sua forma de leitura desse fenômeno histórico está longe de ser a única e tampouco conseguiu consenso em relação à ideia de que o Holocausto não possui precedentes. Sua obra tem papel fundamental em, mesmo mantendo a ideia de “sem precedentes”, mostrar a “universalidade” do Holocausto. Isso seria uma contradição? Não exatamente. Bauer afirma que ao se falar que um fenômeno é “sem precedentes” devemos sempre dizer em comparação com o que. Só podemos afirmar que o Holocausto é sem precedentes quando é comparado a outros fenômenos, de natureza presumivelmente similar, com as quais comparte diversos aspectos. Nesse sentido, sua “universalidade” está muito presa a ideia de que é comparável, mesmo que seja para mostrar que é sem precedentes. Em resumo: para o historiador, eventos históricos como a escravidão, a deportação massiva por fome ou o homicídio ativo, são formas de proporcionar o genocídio, mas não de repetir o Holocausto.
O giro pós-colonial
Foi o historiador australiano, erradicado nos Estados Unidos, Dirk Moses, em seu texto The German Catechism, publicado em 2021, que teria dado início a um novo fôlego a esse antigo debate entre os historiadores. Moses explica que a concepção de que a memória do Holocausto representaria uma “ruptura” com a civilização fez com que qualquer comparação desse evento com outros genocídios fosse considerada uma heresia. Para ele, porém, seria a hora de abandonar esse “catecismo”. O debate se tornou ainda mais acalorado quando Moses e outros autores, como Achille Mbembe, Michael Rothberg e Jürgen Zimmerer, têm partes de suas obras acusadas de “antissemitismo”, em especial quando ligam o passado nazi ao colonialismo.
Tanto na primeira geração de estudiosos sobre a Segunda Guerra e o Holocausto, como Saul Friedlander, Ernst Nolt, Martin Bozsat, Hans Mommsen, Israel Gutman, quanto na geração posterior, como Goetz Aly, Omer Bartov, Peter Longerich, Martin Gilbert, Richard Evans, o colonialismo nunca ocupou um papel de destaque explicativo na natureza do conflito e da escalada brutal de violência que proporcionou o genocídio. Naturalmente, alguns pontos fora da curva, como o singular trabalho de Arno Mayer e, mais recentemente, o trabalho Mark Mazower, trouxeram a dimensão “imperial” como foco de discussão para explicação desses fenômenos.
É importante recordar que Hannah Arendt havia apontado o potencial de gerar o vínculo entre a violência estatal e o nacionalismo, mostrando como esse cenário poderia gerar os mais terríveis horrores. Entretanto, essa fala foi apagada ao longo do tempo, para dar destaque à questão do antissemitismo em seu texto e, em seguida, ao constructo teórico do totalitarismo. Hoje, com o que se pode chamar de “giro” decolonial, a própria leitura de sua obra, especialmente na Alemanha e nos EUA, tem ganhado cada vez mais espaço por tratar dos massacres oriundos da exploração colonial.
Nesse sentido, a obra de Dirk Moses, ganha destaque não só no meio acadêmico, mas também pela forma como foi recebida pelo grande público, ao retirar as excepcionalidades do conflito e do genocídio e entendê-los dentro do campo de estudos do colonialismo. Naturalmente, todo evento histórico possui singularidades, e o retorno desta questão hoje fez com que autores com contribuição significativa dentro dessa temática tenham sido rotulados como revisionistas e negacionistas, por retirarem desses eventos a sua tão sacralizada “singularidade”.
As críticas a obra de Moses foram publicadas no jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, por acaso, o mesmo que defendeu o controverso Ernst Nolte nos anos 1980 (quando estava em voga a chamada Historikerstreit). Thomas Thiel, um dos redatores do jornal, é um dos seus severos críticos. Ele inicia seu texto, que numa tradução livre seria “Troca de papéis na pirâmide das vítimas” (Rollentausch in der Opferpyramide), dizendo que o principal objetivo de Moses não está em tentar provar que o Holocausto está calcado na tradição do colonialismo Ocidental, mas sua preocupação residiria na “liberdade” de questionar o “direito à existência do Estado de Israel”. Thiel afirma que Moses minimizou o Holocausto mostrando que ele seria apenas um genocídio “derivado” e criticou duramente sua proposição de utilização do termo “segurança compensatória”.
O Frankfurter Allgemeine Zeitung não se conteve com um só texto crítico e começou uma série de publicações para desacreditar o trabalho de Moses. O historiador Stephan Malinowski foi direto ao ponto em seu artigo “A lógica dos perpetradores” (Die Logik der Täter), deixando claro que a obra de Moses estava equivocada ao propor substituir o conceito de “genocídio” pelo de “segurança contínua”, que seria uma apropriação do termo utilizado pelo SS-Gruppenführer Otto Ohlendorf, líder do Einsatzgruppe D e responsável pelo assassinato de 90 mil pessoas no sul da Ucrânia e no Cáucaso. O texto é duro e critica fortemente como Moses abordou a política de memória da Alemanha sobre o seu passado doloroso, chegando a comparar sua análise com os discursos de neonazistas.
Teto de cúpula no Yad Vashem, Memorial do Holocausto em Jerusalém, Israel. Foto:
Eelco Böhtlingk, Pixabay.
Afinal, o que disse Moses em seus textos para levantar críticas tão severas e controversas? A construção do que chamou de “catecismo alemão” estaria baseada em alguns princípios: I. Que o Holocausto seria único porque o extermínio dos judeus e seu ato ilimitado seria distinto dos objetivos limitados e pragmáticos de outros genocídios; II. Seria a primeira vez na história que um Estado se propôs a destruir um povo por motivos unicamente ideológicos; III. O Holocausto seria uma “ruptura civilizacional” e o fundamento “moral” de uma nação; IV. Antissionismo seria antissemitismo; V. Antissemitismo como um preconceito distinto não devendo ser confundido com racismo; VI. A Alemanha teria uma responsabilidade especial para com os judeus da Alemanha e uma lealdade especial a Israel. Para Moses, esse “catecismo” substituiria um anterior que considerava o Holocausto um “acidente histórico” cometido por um “grupo de fanáticos” que instrumentalizaram o antissemitismo para “desonrar a nação”.
Seu argumento segue mostrando que o “catecismo” implicaria em uma história recente da Alemanha que fosse “redentora”, na qual o extermínio dos judeus no Holocausto fosse uma premissa de legitimidade da República, levando a Shoá de evento histórico importante à um trauma sagrado que “não pode ser contaminado por profanos – vítimas não judias e outros genocídios”, que enfraqueceriam sua singularidade.
Nos anos 1990 começou uma iniciativa de dar mais atenção a história imperial e as narrativas coloniais. Os estudos chamados de pós-coloniais buscaram compreender a metrópole e a colônia como uma “unidade”, onde fluxos de informações, pessoas e culturas ocorriam de forma permanente. Nesse sentido, o legado “colonial” desse passado recente também se expressaria em um léxico que era comum no colonialismo. Termos como espaço vital, povos em processo de extinção, subumanidade, aniquilação, raça superior, dentre outros, eram utilizados no século XIX, mas também preenchiam o vocabulário do Nacional Socialismo.
Essa interpretação pós-colonial coloca em questionamento a singularidade do Holocausto, buscando compreender os fascismos como um colonialismo que tem raízes em um país tradicionalmente colonialista. É nessa perspectiva que Moses coloca em dúvida o uso do termo “genocídio” pelos investigadores de história. Questiona se uma categoria jurídica, cujo propósito não seria contextualizar, tampouco explicar, mas definir “inocência” e “culpa”, distinguir as vítimas de seus algozes, seria adequada. Entretanto, sua tentativa de utilizar um conceito extraído do vocabulário de um algoz não parece ter soado positivamente entre parte de seus pares. Mas, também é verdade que historiadores como Enzo Traverso e Dan Stone saíram em sua defesa.
É nesse sentido que vemos como urgente a ampliação desse debate, que pouco ou quase não chegou ao sul global. Desde a importância de Frantz Fanon e Aimé Césaire para esse debate, até o famoso texto de Du Bois e o Gueto de Varsóvia, necessitamos buscar novas perspectivas e abordagens que mostrem como os estudos sobre o racismo e a questão colonial impactaram os estudos sobre a Guerra e o Holocausto, e como comparar o incomparável é uma das tarefas do dia a dia da arte de compreender o passado.
Creio que a pergunta se o Holocausto é singular, único ou sem precedentes, deve ser respondida com o romance de André Schwartz-Bart, La mulata Soledad (1972), especificamente em sua última página. Depois de uma narrativa pioneira, onde identidade, colonialismo, escravidão e liberdade são destrinchadas pela história de Soledad, na Ilha de Guadalupe, durante o século XVIII, o autor, que procura demonstrar todas as violências impostas pelo sistema colonial, traz para o desfecho o Gueto de Varsóvia: “E, nesse momento, se é que quer honrar a memória de alguém, com a força de sua imaginação ocupará o espaço que a rodeia, e se a sorte lhe fosse favorável, uma abundância de silhuetas humanas, se alçará em seu entorno, como ainda sucede, ante os olhos de outros viajantes, com os fantasmas que seguem indo de um lugar a outro por entre as ruínas humilhadas do gueto de Varsóvia”.
Portanto, não é uma questão sobre comparar o incomparável ou sobre a sacralidade de um tema sensível, mas como seus usos políticos e instrumentais demonstram que a batalha não tem sido pelo Holocausto como evento, como genocídio, mas pela autoridade legítima dos usos de suas memórias.
Referências
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Como citar este artigo
SCHURSTER, Karl. Um evento incomparável? a questão da singularidade do Holocausto e a assimilação do passado (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-singularidade-do-holocausto-e-a-assimilacao-do-passado/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 11 Mar. 2024.