Uma aula de História anticapitalista não consiste em qualquer tentativa de doutrinação e, muito menos, ensina uma história única. Ao contrário, uma aula anticapitalista é aquela que se debate com os poderes que diminuem ao máximo a potência de existir das pessoas e, sobretudo, das pessoas pobres. Uma aula de História constitui-se em um modo de ler o mundo, de interpretar e de criar cenários possíveis; imaginá-los como forma de interferir no tempo presente, como maneira de criar alternativas para a vida. Ela acontece com ciência, conceito, conhecimentos e sensibilidades.
O capitalismo, considerado um sistema econômico, um sistema-mundo, ou mesmo um modo de produção, não é a mais adequada, horizontal e igualitária forma de organizar a vida, nem mesmo é a única maneira de existir. Povos de diferentes lugares e em diferentes tempos mostraram e mostram que há outras maneiras de organizar a sociedade, de se relacionar e de viver. Muitas delas não se baseiam na exploração do trabalho e na desigualdade social, tal como se apresenta o capitalismo.
O capitalismo molda os modos de pensar, de fazer e de se relacionar de maneira predominante sobre a Terra. Foi criado por pessoas que perceberam o quanto podem extrair de riqueza ao explorar o trabalho de outros, e não hesitaram em fundamentar sua boa vida – em concepção individualista, acumuladora e insaciável – sobre o genocídio e a escravização. Além disso, criaram justificativas para tentar convencer aos explorados de sua suposta inferioridade e de que, por isso, receberiam apenas as migalhas da terra. Ou seja, trata-se de um sistema que produz morte – da natureza, das pessoas, da criatividade e da cooperação – que inventou inúmeras formas de anular a quem mantém a roda da vida girando.
Por isso, uma aula anticapitalista está atenta a outros modos de organização social e de formas de se relacionar dos seres do mundo, no tempo e no espaço. Formas que se tornam conteúdo da pesquisa histórica e da aula de História, que sobrevoam o tempo em passados muito remotos e que se estenderam e se estendem por diversas partes do globo, inclusive na própria Europa. Por exemplo, as maneiras de relação entre si e com a natureza do povo Yanomami, que num tempo simultâneo ao que vivemos, mostram como os seres, incluindo as pessoas, os rios, os animais, as plantas, não são objetos ou mercadorias, mas parentes. Comunidades tradicionais que criam formas econômicas sustentáveis e alternativas, como as “Guardiãs da Terra”, na comunidade quilombola Barra da Aroeira, no município de Santa Tereza, em Tocantins, onde as agricultoras e artesãs produzem arroz, feijão, mandioca, abóbora, inhame, alimentos do corpo e do espírito, baseados na ancestralidade.
São modos de organização que resistem à ideia de que a história terminou e que a única forma de viver seria sob a égide do capitalismo e não se enganam com as promessas de parcerias ditas sustentáveis com empresas privadas que vendem sementes mortas. Afinal, se tudo permanece na lógica capitalista, a alienação persiste, mesmo que embalada com plástico reciclável. Essas experiências nos dizem também que é possível pensar e se relacionar com as pessoas de modo diverso ao do capitalismo, onde a exploração do trabalho e sua atual precarização, bem como a acumulação desenfreada de propriedade e da riqueza, são quase dados da natureza. A mão do mercado capitalista não é invisível: é a mão que separa, classifica e exclui. É a mão que segura a arma, e a motosserra que despeja o mercúrio.
A aula de História mostra a historicidade de todas as relações e nos informa que os poderes que se abatem contra a vida, impondo a fome, a desigualdade, a iniquidade e o sofrimento não são indestrutíveis ou eternos. Portanto, a aula de História anticapitalista não doutrina, mas ensina as histórias das pessoas e dos seres no tempo e no espaço, mostrando que a vida não está eternamente submetida a um sistema de expropriação e desigualdade. Uma aula de História anticapitalista ensina sobre a formação do capitalismo e sobre seu funcionamento. Mostra, por exemplo, que a acumulação de capitais da chamada era moderna, pelos europeus, se baseou na expropriação das riquezas dos povos ameríndios e na escravização dos povos africanos e indígenas. Tais processos se estendem no tempo, constituindo formas sociais ainda hoje, baseadas no racismo e na pobreza. No século XIX, o capitalismo monopolista e financeiro estendeu seus tentáculos para o interior da África, da Ásia e da Oceania, a fim de colonizar para dispor de matérias-primas e de lugares para investimento de capitais. Os efeitos dessa colonização para os povos africanos e asiáticos foram desastrosos: guerras intermináveis, genocídios, pobreza.
A constituição histórica do capitalismo mostra que o sistema que se transformou, paulatinamente, em um sistema-mundo, procurou intervir e se entremear nas diversas formas de vida e organização de todas as partes do globo, um movimento de mundialização, baseada na conquista, na colonização e na expropriação. O capitalismo, portanto, consiste no esforço de penetrar nos espaços de produção da vida e submetê-los à sua racionalidade, supondo-se a si a última e a mais adequada forma de organização social e do trabalho. Por isso, pequenos e grandes movimentos de trabalhadores, de povos originários, de descendentes da diáspora africana e tantos outros não são experiências de contestação posteriores ao capitalismo, mas, sim, responsáveis pela produção da vida para todos, irredutíveis a ideologias ou partidos. Nesse sentido, são anticapitalistas porque mostraram e mostram que a “lógica capitalística” não conseguiu reduzir todo o mundo aos seus encantos.
Tudo se passa como se o capitalismo procurasse envenenar as possibilidades de vida que se produzem todos os dias por todas as partes do mundo, aprisionando o trabalho, a alegria e o bem-viver. Isso porque o capitalismo é um sistema contrário à vida, pois ele se organiza sempre contra a existência, na forma da escravização, dos genocídios e da exploração, tornando tudo e qualquer coisa fonte de lucro e mercadoria. A vida é o nome de toda a resistência: dos povos que buscam no “bem-viver”, nas formas colaborativas de relação entre os seres do mundo, resistir às investidas mercadológicas do capital; das pessoas, ainda que vivendo sob a égide da lógica capitalística, encontram outras formas de pensar, de agir e de se relacionar, baseadas na generosidade e na solidariedade.
Referências
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
Costa, Suzane L.; Xucuru-Kariri, Rafael. Cartas para o bem-viver. Salvador: boto-cor-de-rosa livros, arte e café / paraLeLo13S, 2020.
Wallerstein, Immanuel. Análise dos sistemas mundiais. In: Giddens, Anthony; Turner, Jonathan (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Ed. Unesp, 1999.
Como citar este artigo
PEREIRA, Nilton Mullet; PACIEVITCH, Caroline. Os sentidos mínimos da aula de História: o anticapitalismo. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/os-sentidos-minimos-da-sala-de-aula-o-anticapitalismo/. Publicado em: 22 jan. 2024. ISSN: 2674-5917.