A História dos Estados Unidos nos games: o Velho Oeste de Red Dead Redemption

Franquia de sucesso lançada pela primeira vez em 2010 é ambientada no contexto da expansão para o oeste nos Estados Unidos. Storytelling proporciona ao jogador uma experiência imersiva no gênero de western.
12 de setembro de 2023
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Assalto à carruagem em RDR (2010). Fonte: Divulgação/Rockstar Games.

Desde o século XIX, a expansão para o oeste nos Estados Unidos inspirou uma série de mitos e lendas. Os dois jogos da franquia Red Dead Redemption, lançados em 2010 e 2018, representam um marco significativo deste imaginário. Ambos evidenciam o potencial dos jogos eletrônicos como recurso revolucionário de storytelling, propiciando uma das experiências mais imersivas no gênero de western (ou faroeste, como é conhecido no Brasil). No entanto, o que mais esses dois jogos podem nos dizer sobre a formação dos Estados Unidos como nação moderna?

O imaginário da conquista: destino manifesto e wilderness

Nenhum período foi tão importante para a história dos Estados Unidos como o século XIX. Embora a independência das treze colônias tenha sido concretizada no último quartel do século XVIII, foi apenas no seguinte que o país se constituiu como Estado nação, consolidando suas estruturas políticas, econômicas e sociais modernas.

Isso foi possível graças a acontecimentos marcados por episódios de extrema violência e barbárie, entre os quais destaca-se a expansão rumo ao Oeste e a Guerra da Secessão (1861-1865). No que diz respeito ao primeiro, convém destacar dois elementos fundamentais do ponto de vista simbólico: a noção de destino manifesto e o conceito de wilderness.

O destino manifesto foi uma ideologia segundo a qual os estadunidenses possuiriam o direito divino de expandir sua presença e seus valores pelos territórios desconhecidos, levando o progresso e a civilização aos seus habitantes originais. Sob essa ótica, os estadunidenses seriam o povo eleito, tendo sido predestinados a cumprir um destino histórico desde a chegada dos puritanos.

Já o conceito de wilderness – podendo ser traduzido como vastidão, imensidão, deserto ou sertão – possui um significado particular. Segundo a historiadora Mary Anne Junqueira, esse termo se refere primariamente à sensação de estranhamento atrelada a um determinado espaço que desperta humores e sentimentos extraordinários no indivíduo. No caso em questão, esse lugar assume a forma da fronteira (frontier) e tudo que há para além dela no Oeste. Isto é, as terras inóspitas que ocupam as zonas desconhecidas do mapa; terras tão vastas, imensas e exuberantes que podem tanto intimidar como encantar o viajante. Nesse sentido, a fronteira pode ser definida como a linha imaginária entre civilização e barbárie, continuamente deslocada para o oeste do país por meio da ação desbravadora dos pioneiros – ou frontiersmen, como eram conhecidos.

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Segundo essa mesma historiadora, os conceitos de wilderness e de fronteira são fundamentais para se entender a identidade norte-americana, pois, na visão de seus ideólogos, seria pelo contato direto com a wilderness que o sujeito se desloca da sua zona de conforto, fomentando as virtudes e valores que caracterizam o “homem americano”. À medida que o indivíduo avança, ele expande a fronteira entre civilização e barbárie, transformando-se na figura romântica do herói rústico e autossuficiente, que se aventura pelo desconhecido a fim de domá-lo.

Red Dead Redemption: o Oeste em declínio

Em maio de 2010, a produtora de games Rockstar, famosa pelos jogos da franquia Grand Theft Auto (popularmente conhecida como GTA), lançou Red Dead Redemption (RDR), o jogo de western mais ambicioso já produzido. A história se passa em 1911. O tempo dos pistoleiros e dos pioneiros chegara ao fim, restando apenas a memória dos antigos dias de glória. O protagonista é John Marston, o ex-integrante de um bando liderado por um fora-da-lei chamado Dutch van der Linde. Muitos anos haviam se passado desde que o antigo bando se desfez. Desde então, Marston tem buscado viver uma vida tranquila ao lado de sua família. Todavia, agentes federais sequestram sua esposa e seu filho, forçando John a procurar seus antigos companheiros para trazê-los à justiça. Essa postura hipócrita e covarde daqueles que supostamente representam a “civilização” é contraposta à do fora-da-lei honesto, fiel ao seu próprio código moral.

Porém, da mesma forma que o jogo apresenta a versão honrada do fora-da-lei através do protagonista, ele também apresenta a versão cruel e decadente, representada por Dutch. Diferente de outros fora-da-lei, ele sempre alegou que seus crimes teriam sido cometidos por um “ideal maior”. Nunca fica claro o que seria esse ideal, mas os diálogos indicam que seria algo próximo do “bom selvagem”, aludindo à utopia pastoril dos seguidores de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo iluminista e percursor do romantismo. Ciente de que sua era chegara ao fim e de que não havia escapatória, Dutch finalmente admite, em tom melancólico e resignado, que é impossível lutar contra a mudança. O mesmo país que se valeu de homens como ele para construir sua mitologia agora o descartava, transformando-o numa figura folclórica de uma época superada, assim como o fizera com tantos outros. Com isso, se a história de Dutch coloca em pauta a impossibilidade de resgatar o passado, a de John nos leva a refletir sobre a impossibilidade de fugir do passado. De certa forma, essa dupla inviabilidade alude à história oficial dos Estados Unidos, que glorifica um passado distante para não o compreender e confrontá-lo em sua realidade.

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Quatro ambientes em RDR2 (2018): o vale, o pântano e as cidades de Armadillo e Saint Denis (ambas em etapas distintas no processo de urbanização). Foto: Filipe Jota/Rockstar Games.

O segundo jogo mantém os elementos que fizeram do primeiro um clássico, acrescentando muitos outros. Red Dead Redemption II (RDR2) foi lançado em 26 de outubro de 2018 e foi um sucesso instantâneo de vendas e críticas. A história tem início em 1899, doze anos antes dos eventos do primeiro jogo. Na introdução, o jogador é informado que nessa época a era dos fora-da-lei e dos pistoleiros chegava ao fim; os Estados Unidos se tornavam uma terra de leis e as poucas gangues que sobraram estavam sendo caçadas e destruídas. O protagonista é Arthur Morgan, um membro de alto escalão da gangue de Dutch van der Linde. Depois de um assalto a banco malsucedido, a gangue luta pela sobrevivência enquanto foge das autoridades. Dutch, o líder do bando e antagonista do primeiro jogo, exerce sua autoridade de forma carismática, mobilizando seus seguidores com promessas de liberdade. Seu objetivo é continuar avançando em direção ao oeste até encontrar uma terra que seja fértil e isolada, na qual ele e seus companheiros possam construir um modelo alternativo de sociedade.

No entanto, ao longo da história o protagonista gradualmente se dá conta que não eram os elementos positivos do “selvagem” que prevaleciam em Dutch e seus seguidores, mas sim os negativos, revelando que a busca por um sonho era apenas um pretexto para mais violência e destruição sem limites. Eventualmente, Arthur é levado a se perguntar em que medida é justificável matar e roubar por um ideal que, ao que tudo indica, está fadado ao fracasso.

Jogabilidade

Nesses jogos é possível interagir com todo tipo de gente: homens bêbados e prostitutas em saloons, bandidos que buscam atacar o jogador desprevenido nas estradas, caçadores de recompensa, pistoleiros vaidosos, xerifes intransigentes, entre outros. Alguns desses personagens possuem histórias próprias. Trágicas ou cômicas, estas são geralmente acompanhadas de um pedido ao jogador: pode ser que o filho de alguém tenha desaparecido em alguma região inóspita e sua mãe precise de ajuda para encontrá-lo; pode ser que um fazendeiro peça ajuda para quitar uma dívida; pode ser que alguém precise chantagear o político local com evidências comprometedoras; ou pode ser apenas um simples fazendeiro buscando flores para sua esposa. O jogador tem a opção de cumprir essas missões extras ao longo do jogo, ganhando recompensas em forma de dinheiro, itens ou pontos de honra. A honra dependerá de suas escolhas: matar, roubar e qualquer atitude imoral fará com que ela diminua, ao passo que boas ações tornarão o jogador honrado, influenciando a forma com que os outros personagens o tratam e reagem à sua presença.

Em suas viagens, pode ser que o jogador tenha que lidar com incidentes e encontros repentinos. Pode ser que seja emboscado por uma gangue rival, que encontre um corpo com uma carta de amor ou que se depare com a cena de um crime chocante. Também pode ser que seja devorado por animais selvagens ou que seja súbita e violentamente atacado por membros de uma facção estranha, conhecida por sua dieta canibal.

A caça e a coleta de plantas têm um papel estratégico, permitindo que o jogador abasteça seu estoque de comida, além de fornecer matéria-prima para a fabricação de peças de vestuário, estimulantes e remédios – para si e para o seu cavalo. Esses recursos também podem ser utilizados para aprimorar seu arsenal, viabilizando, por exemplo, a fabricação de substâncias inflamáveis ou venenosas. Com essas adaptações, a saúde e as habilidades do personagem são aprimoradas, tornando-o mais apto a enfrentar a wilderness.

O mapa dos dois jogos é vasto, sendo composto por uma rica variedade de ecossistemas, situados em regiões áridas, planícies, florestas, pântanos e montanhas. Cada um desses ambientes é habitado por uma variedade igualmente surpreendente de espécies de animais e de plantas. Para explorar essas áreas, convém separar roupas para climas quentes e frios.

Se estiver cansado do interior, as áreas urbanizadas têm uma série de comodidades a oferecer, tais como alojamentos, banhos, saloons, restaurantes, jogos de azar, consultórios médicos, barbeiros, estúdios de fotografia, celeiros, cinemas e teatros.

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Expedição de caça em RDR2 (2018). O jogo oferece a opção de fazer captura de tela e aplicar filtros no estilo de fotografias do século XIX. Fonte: Filipe Jota/Rockstar Games.

Naturalmente, essa liberdade não é irrestrita. Como em qualquer jogo, as escolhas são oferecidas a partir de condições predeterminadas, gerando consequências claras e previsíveis. No entanto, há exceções. Por exemplo, o jogador é impedido de correr e empunhar armas dentro da reserva indígena, sendo também impedido de se dirigir aos índios de forma desrespeitosa. Por outro lado, se o jogador se deparar com uma reunião secreta de membros da Ku Klux Klan, seus pontos de honra não serão afetados caso resolva matá-los. É nesse âmbito que os desenvolvedores revelam o juízo de valor que pautou certas decisões de programação.

Por fim, essas aventuras ainda são coroadas com uma trilha sonora inspirada nas obras de nomes como Ennio Morricone e Elmer Bernstein. Ambos os jogos fazem diversas homenagens a clássicos do cinema western, desde a era dos filmes mudos aos épicos de John Wayne, desde os spaghetti westerns de Sergio Leone às versões revisionistas atuais.

Passados imaginados

Ao buscar um lugar que, tal qual a linha do horizonte, tende a se deslocar enquanto o observador se aproxima, Dutch assume a forma trágica de uma figura quixotesca. Nesse âmbito, fica evidente que o Oeste, como utopia, cumpriu um papel de destaque na formação social dos Estados Unidos. Ainda que a maioria de seus elementos românticos não correspondam à realidade histórica, sua busca foi significativa em termos simbólicos, enquanto permitiu aos estadunidenses construírem uma certa ideia acerca de si, conferindo sentido à sua presença perante o mundo.

Isso não significa que o gênero de western se resuma a essa dimensão ideológica de cunho nacionalista. Pelo contrário, as abordagens são tão ricas quanto diversas. Em todo caso, independentemente de quais sejam, sua apreciação nos leva a refletir sobre uma questão comum: em que medida as versões românticas e idealizadas do nosso passado podem nos inspirar a construir um futuro efetivamente melhor?

Referências

FALCON, Francisco José Calazans. Utopia e Modernidade. In: MONTEIRA, John; BLAJ, Ilana (Org.). História & Utopias. São Paulo: AMPUH, 1996.

JUNQUEIRA, Marry Anne. Estados Unidos: Estado Nacional e Narrativa da Nação (1776-1900). São Paulo: Editora Edusp, 2018.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em Busca de uma Outra História: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, pp. 9-25, 1995.

Como citar este artigo

JOTA, Filipe Dantas de Oliveira. A História dos Estados Unidos nos games: o Velho Oeste imaginário de Red Dead Redemption. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-historia-dos-eua-o-velho-oeste-imaginado-de-red-dead-redemption/. Publicado em 12 set. de 2023. ISSN: 2674-5917.

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