Lima Barreto e os modernistas: 100 anos de uma polêmica literária

A escrita ácida e o comportamento iconoclasta do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, pouco antes de seu falecimento, acirraram os ânimos dos jovens escritores paulistas, em um episódio esquecido da literatura bra-sileira.
28 de novembro de 2022
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Afonso Henriques de Lima Barreto, o "Lima Barreto", nascido em 1881 e falecido em 1922.

Em 1922, o movimento modernista em São Paulo decolava com a realização da chamada “Semana de Arte Moderna”. Mas isso não significa dizer que o modernismo paulista tenha permanecido alheio aos críticos. Um desses críticos foi o escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto, que naquele ano trocou algumas “farpas literárias” com autores modernistas paulistas nas páginas das revistas Careta e Klaxon.

Tudo começou quando Lima Barreto recebeu das mãos do historiador Sérgio Buarque de Holanda, então jovem modernista, um exemplar da revista Klaxon, ao que reagiu com uma boa dose de ironia. O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma insultava o grupo de moços e moças bem-alinhavados com ofensas pessoais. Referia-se a eles como “moços que ajeitam os seus monóculos parados às esquinas, o braço em arco, pálidos, faces encovadas, a mão branca e longa nos acenando gestos nervosos”.

O autor carioca condenava a iniciativa da turma que estreou em 1922, em São Paulo. Ainda assim, o grupo modernista e Lima Barreto guardavam alguns posicionamentos em comum. Barreto questionava, por exemplo, o bovarismo, isto é, a predileção por tudo o que fosse estrangeiro, em detrimento daquilo que fosse nacional. Nesse ponto, ele e o líder modernista Mário de Andrade concordariam sem titubear. Mas se é certo que se o autor carioca integra o esforço de busca de valores essencialmente nacionais, assim como os modernistas, ele tem um mérito original: o de lançar luz sobre a população suburbana, frequentemente esquecida no exercício de se compreender o Brasil e seu povo até então.

Barreto, por sinal, parecia não gostar de narrativas que pudessem soar como elitistas. Assim como se mostraria contrário ao movimento modernista, Lima foi avesso à instituição da Academia Brasileira de Letras em 1897, ainda que tenha apresentado sua candidatura como imortal três vezes – na terceira vez retirou seu nome antes do pleito. Parecia se opor a toda tentativa de criação de uma distinção entre “nós, escritores” e o restante da população.

Insultos geográficos

Em outra crítica, publicada na revista Careta, Lima Barreto reforça a ideia de que a aceitação do modernismo não ocorreu sem estranhamentos à época. Ele faz referências geográficas às cidades dos autores, que são usadas como arsenal na troca de insultos. Por isso, é possível supor que a “reação barretiana” ao grupo modernista paulista talvez também fosse encorpada pelo receio de ver seu Rio de Janeiro, então capital federal e cenário de todos os seus livros, perder espaço para São Paulo, que emergia como potência econômica, com uma aristocracia cafeeira decadente cujos recursos eram escoados para a indústria nascente, e que buscava se firmar como centro cultural.

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Capa da revista modernista Klaxon. Foto: reprodução internet.

É interessante analisar o posicionamento de um escritor consolidado no campo frente a um movimento nascente. Hoje não se fala em literatura brasileira sem se referir à Semana de Arte Moderna, mas a repulsa inicial direcionada ao modernismo costuma se perder na memória literária. Atualmente, é inegável a importância do movimento para a história nacional, mas a reação do escritor carioca revela os bastidores da produção artística do Brasil, em que se evidencia, inclusive, suposta rivalidade entre Rio e São Paulo.

“Sorrisos de ironia”

Contra o modernismo e os modernistas, chamados por ele de “futurismo e futuristas”, respectivamente, Lima Barreto ergue algumas barreiras de contenção. Com a acidez que lhe é característica, não deixa de se lançar contra os mancebos paulistas, arautos de mais das “novidades velhas de quarenta anos”, na expressão do escritor carioca. Nem mesmo o nome da publicação escapa da artilharia retórica de Barreto. Ao receber a Klaxon, o autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha pensa se tratar “de uma revista de propaganda de alguma marca de automóveis americanos”, afinal “nome tão estrambótico não podia ser senão inventado por mercadores americanos, para vender o seu produto”. Mas o autor tenta contemporizar e afirma, tentando tornar a crítica impessoal: “o que há de azedume neste artiguete não representa nenhuma hostilidade aos moços que fundaram a ‘Klaxon’; mas sim a manifestação da minha sincera antipatia contra o grotesco ‘Futurismo’, que no fundo não é senão escatologia, sobretudo esta”.

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Diversos artistas e intelectuais que participaram da “Semana”. (Reprodução).

A resposta paulista não tardaria a vir, com munição ainda mais pesada. Os modernistas avaliaram que o boêmio carioca não havia entendido sua proposta, simplesmente confundida com o futurismo do artista e intelectual italiano Filippo Tommaso Marinetti. Lima Barreto, no entanto, parece não dar tanta importância ao movimento modernista, ou apenas prefere não demonstrar isso. Contrariamente, ainda que confessassem ter recebido o artigo com “sorrisos de ironia”, os modernistas, por meio de sua resposta ressentida, fazem transparecer o quanto era importante para eles a consideração do autor carioca, referido com menoscabo como “um snr. Lima Barreto” e “escritor de bairro”.

Lima Barreto faleceu em primeiro de novembro de 1922, em decorrência de complicações resultantes do consumo excessivo de álcool. Em 2022, recordou-se não somente o bicentenário da independência e o centenário da Semana de Arte Moderna, mas também 100 anos da morte de Afonso Henriques de Lima Barreto, cuja trajetória guarda correspondência direta com o modernismo. Ainda neste ano, foi lançado o longa-metragem Lima Barreto ao terceiro dia, dirigido por Luiz Antonio Pilar, em que o escritor trava diálogo com alguns de seus personagens, em especial Policarpo Quaresma, que talvez seja seu personagem mais conhecido. Trata-se de uma bela produção que homenageia Lima Barreto com diálogos e reflexões retirados de alguns de seus livros, notadamente Diário íntimo, Cemitério dos vivos e Triste fim de Policarpo Quaresma. Esse filme, por meio da interpretação do ator Luis Miranda, contribui para manter viva a memória artística de Lima Barreto, escritor de relevo para a compreensão dos dilemas nacionais.

Referências

BARRETO, Lima. Toda Crônica (apresentação e notas Beatriz Resende; organização Rachel Valença). 1ª ed. 2 v. Rio de Janeiro: Agir, 2004. v. 2.

BOSI, Alfredo. O Pré-Modernismo. São Paulo: Cultrix, 1966.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Como citar este artigo

LEITE, Fernando Sousa. Lima Barreto e os modernistas: 100 anos de uma polêmica literária (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/lima-barreto-e-os-modernistas/. Publicado em: 17 out. 2022. ISSN: 2674-5917.

Fernando Sousa Leite

Bacharel em Relações Internacionais e mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, é diplomata de carreira do Ministério das Relações Exteriores e dou-torando no Programa de Pós-Graduação em História da UnB (PPGHIS/UnB).

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