Antes ignorado ou subestimado, o bullying é atualmente encarado como um problema bastante sério e real por especialistas.
Bruno Leal | Agência Café História
Recentemente, o termo inglês bullying foi incorporado ao vocabulário de professores, coordenadores pedagógicos e estudantes de todo o Brasil. O conceito, que deriva da palavra bully (valentão, em português), pode ser definido como qualquer atitude agressiva (física ou não) com o intuito de intimidar, humilhar ou agredir alguém. Por muito tempo, o bullying foi subestimado ou ignorado. O cenário só mudou nos últimos dez anos, aproximadamente, quando pesquisadores e os meios e comunicação passaram a publicar estudos que mostravam que esse tipo de violência é muito mais antiga, corriqueira e danosa do que se imaginava.
Em abril de 2011, a discussão sobre bullying se aprofundou bastante no Brasil após a tragédia ocorrida na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, Rio de Janeiro. No dia sete daquele mês, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, entrou armado nas dependências da escola carioca e disparou contra diversos alunos. No total, 12 pessoas foram mortas naquele dia. Wellington – ex-aluno da escola – cometeu suicídio em seguida. Dias depois, a polícia encontrou vários vídeos de Oliveira. Em vários, o jovem sugere que práticas de bullying contra ele nos tempos de escola seriam a justificativa do massacre que ele cometeria. Em um dos vídeos, ele diz: “Que o ocorrido sirva de lição, principalmente às autoridades escolares, para que descruzem os braços diante de situações em que alunos são agredidos, humilhados, ridicularizados, desrespeitados”. Como esperado, ninguém aceitou o passado de Oliveira como vítima de bullying como justificativa para o massacre, mas a menção ao tema em seus vídeos fez com que o debate sobre o assunto se tornasse mais presente na esfera pública.
O que motiva o comportamento agressivo de certos adolescentes ainda não é algo totalmente conhecido. Muitos educadores, porém, acreditam que o fenômeno pode estar intimamente associado à maneira como as diferenças no ambiente escolar são colocadas e enfrentadas por estudantes e educadores. A escola, por excelência, é a primeira experiência do ser humano com a sociedade não-familiar. É na escola quase sempre que a criança se depara pela primeira vez com o diferente, com o assimétrico. Quando este contato não é positivo, pode haver algum dano na capacidade relacional, ainda mais durante o período da puberdade, quando o jovem está em pleno processo de consolidação de suas identidades sociais.
Pesquisas ajudam a entender melhor o fenômeno
É preciso dizer, no entanto, que a escola não é a única explicação para o problema. O bullying também pode estar relacionado a traumas pessoais bastante específicos, problemas familiares ou ainda a insucessos da criança e do adolescente ao longo de sua formação. Uma pesquisa da Universidade da Califórnia publicada no American Sociological Review concluiu que o bullying é praticado como uma forma de ganhar popularidade, sendo seus principais alvos garotos com status médio ou alto entre seus colegas. No total, foram ouvidos 3.722 alunos dos últimos anos do ensino fundamental de três condados da Carolina do Norte. A pesquisa coincide mais ou menos com o que diz Ana Beatriz Barbosa Slva, autora do livro “Bullying – mentes perigosas nas escolas”, com mais de 400.000 cópias vendidas no Brasil. No livro, Ana Beatriz faz um inventário de vários tipos de violência e mostra como esta prática, também um problema de saúde, está associada à desigualdade de poder ou também à baixa autoestima.
Os próprios alunos estão mais preocupados com o bullying. Pelo menos é que aponta um estudo da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Entre os meses de janeiro de 2008 e janeiro de 2010, 20% das dúvidas no Disque-Adolescente eram sobre dificuldades de relacionamento na escola por causa do bullying, mais do que sexualidade (19,2%).
Outra pesquisa recente derrubou um mito: o de que o “bullying” está atrelado a uma determinada classe social. Quem desmente esse tipo de avaliação é um estudo apresentado há alguns dias pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas pela Infância, realizado em parceria com a FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), na Argentina. De acordo com o trabalho “Clima, conflitos e violência na escola”, diferentemente do que se imaginava, os estudantes das classes mais vulneráveis socialmente não são necessariamente os mais violentos nas escolas. Nas escolas privadas pesquisadas, 13,2% dos alunos disseram que já foram alvos da crueldade de seus companheiros e 15,1% foram satirizados por alguma característica física. Já nas públicas da pesquisa, esses números são de 4,3% e 12,9%, respectivamente.
No Brasil, o IBGE preparou uma espécie de “mapa do bullying”. Segundo o estudo do órgão, Brasília está no primeiro lugar na prática de “Bullying”. 35,6% dos estudantes entrevistados do DF disseram ser vítimas constantes da agressão. Belo Horizonte, em segundo lugar com 35,3%, e Curitiba, em terceiro lugar com 35,2 %, foram, junto com Brasília, as capitais com maior frequência de estudantes que declararam ter sofrido bullying alguma vez.
Visando melhor compreender o tema do “bullying”, entrevistei, na qualidade de editor do Café História, Sandra Albernaz de Medeiros, professora do Departamento de Educação Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), especialista no tema. Confira:
Bruno Leal: Nos últimos dois anos, o tema do bullying ganhou grande destaque na mídia e nas escolas. Na sua opinião, porque esse interesse repentino? Há algum exagero ou o tema demanda, de fato, grande atenção e cuidado?
Sandra Albernaz de Medeiros: Sabemos que a mídia frequentemente elege seus temas preferidos, às vezes para mascarar questões que não tem interesse em abordar, às vezes arroga-se de consciência crítica da vida social formando opiniões. Sendo assim, há sempre que abordar o tema do bullying com cuidado. Entendo que o bullying merece atenção e cuidado, em especial este último. Temos cuidado com aquilo que atentamos. Porque este comportamento merece nossa atenção e cuidado? Porque o bullying é violento, humilhante, desrespeitoso, destrutivo intencionalmente. Isto é que nos assusta. Cuidar de alguém implica em se colocar no lugar do outro, perceber e sentir suas necessidades respondendo a elas na medida do possível. Até onde vivemos em um mundo em que vemos os indivíduos centrados em si mesmo, hedonista (o prazer pessoal passou a ser uma prioridade quase universal), competitivo e, com isso, cruel. Se pensarmos que a crueldade se manifesta das maneiras as mais diversas, aí então, o bullying passa a ter mais sentido, porque não é uma manifestação isolada de alguns “perversos”, mas compõe um quadro de acontecimentos que tem um caráter assustador. Muitos destes acontecimentos são silenciados ou passam completamente desapercebidos. Muitos estão naturalizados. Veja o sistema prisional. Terrível e cruel! Por vezes, penso que o bullying é uma das tantas formas de se exercer um “poder” (torto) onde cotidianamente os atores aos quais nos referimos já foram também humilhados, violentados, talvez quase destituídos de sua humanidade, ou seja, reproduzem o que já sofreram.
Bruno Leal: De uma forma geral, coordenadores pedagógicos e professores que integram a rede nacional de ensino estão preparados para enfrentar o tema? Como deveriam agir neste tipo de situação?
Sandra Albernaz de Medeiros: Esta pergunta é mais difícil de responder. Mas eu suponho que as pessoas têm sempre muita dificuldade ao se defrontar com a violência. Pode haver uma reação de negação, tipo não sei de nada; de psicologização, tipo “temos que encaminhar ao psicólogo” ou as pessoas podem se perguntar “o que fazer?”. Penso que a terceira opção seria a melhor delas, pois o profissional que se faz uma tal pergunta está partindo do princípio que ainda não tem recursos para lidar com a situação, reconhece sua impotência provisória, mas se dispõe a pensar, discutir e encontrar caminhos. Acho que não há uma única maneira de agir para toda e qualquer manifestação de bullying. Cada caso é um caso. Então, as respostas devem procuradas coletivamente envolvendo alunos, professores, coordenadores, pessoal da manutenção, merendeiras, famílias, em suma, todos. Seria melhor ainda envolver a comunidade.
Bruno Leal: Quando o tema é bullying, fala-se muito sobre aquele que sofre, mas pouco sobre aquele que pratica. Essa abordagem não seria insuficiente para se compreender o problema? Por que uma pessoa pratica bullying e como lidar com estudantes que tem esse tipo de comportamento?
Sandra Albernaz de Medeiros: É verdade, fala-se muito de quem sofre e pouco daqueles que praticam. Seria bom ter um entendimento melhor destes indivíduos. Talvez eles sofram tanto quanto aqueles que são humilhados e maltratados. Eu suponho que estes meninos e meninas exponham sua violência e destrutividades (que estão em todos nós) abertamente. Penso também que a disciplina pura e simples é absolutamente ineficaz nestes casos. Já soube de alguns casos que houve revide e os praticantes de bullying inverteram sua atitude: de arrogantes tornaram-se medrosos. É desta polaridade que seria interessante se afastar. Nem arrogantes, nem medrosos, mas outros valores podem ser experimentados sem que a escola e seus habitantes se tornem moralistas.
Bruno Leal: Professores e escola podem praticar bullying ou isso aplica-se somente à relação entre alunos?
Sandra Albernaz de Medeiros: Até o momento a discussão parece estar centrada sobre os mais “fracos”, os estudantes. Há pouco vemos na TV o caso do Dominique Strauss-Kahn. O caso aparece como escândalo e breve será esquecido. Até dúvidas são levantadas quanto ao caráter da camareira. Mas sabemos que em todos os âmbitos sociais há abordagens silenciosamente violentas e humilhantes. Por vezes são invisíveis e aquele que sofre não tem como denunciar ou se manifestar. Outro dia uma aluna minha contou que mudou a filha de escola porque descobriu, através da brincadeira da menina, que a professora tratava as crianças chamando-as de “suas burras, vocês não sabem nada…”. Como as crianças poderão se defender de alguém assim? Eu mesma já sofri bullying de uma colega dentro da universidade e ela fazia as coisas de tal forma que ninguém desconfiava de sua crueldade. Ela simplesmente sussurrava coisas bem desagradáveis quando eu passava ao lado dela. Foi muito ruim. Eu consegui reverter o jogo quando lhe escrevi uma carta em que elegantemente dizia que ela não tinha me acrescentado nada, que ela havia sido nula para mim. Foi ótimo ter feito isso. Então, só para terminar, seria interessante incentivar as crianças ou adolescentes a tentar uma reação, mas providenciar sempre respostas coletivas.
Como citar essa matéria
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Bullying: como compreender as várias faces do problema. (Notícia). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/bullying-um-problema-muito-real/. Publicado em: 2 jun. 2011. Acesso: [informar data].
Acho curioso que na dissecção da abominável prática do bullying não se mencione o encaminhamento jurídico legal da questão e que envolveria os atores principais: escola ,vítimas e pais , agressores e pais .Um cenário de inércia e conformismo ?
A lastimável prática da discriminação, seja por características físicas, práticas religiosas, etnia ou orientação sexual, é a base de toda expressão de ódio irracional. A falta de referência como lembrou Nurimar Fernandes, ao encaminhamento jurídico a ser tomado em tais casos, comprova o conformismo diante da prática: é execrada, porém não se tomam medidas para evitá-la. A sensibilização da mídia, dos pais e lideranças religiosas, os principais formadores de opinião é o passo fundamental. Nos sinistros, TODOS os envolvidos devem ser responsabilizados: família, líderes religiosos, mídia, professores (nos casos ocorridos em ambiente escolar), chefes departamentais (nos ambientes de trabalho). Desculpas públicas dos agressores são necessárias. Em caso de agressão física, afastamento da sociedade (encarceramento ou reformatório juvenil) são medidas a se estudar.