É provável que você, caro leitor, já deva ter realizado alguma compra ou venda pela Internet. Ao fazê-lo, provavelmente não levou em conta que para que a operação fosse bem-sucedida, três condições mínimas se fizeram imprescindíveis: a confiança na segurança do sistema, a expectativa de que o vendedor entregasse o produto e de que o comprador não estivesse usando um cartão clonado. Sem a crença de que tais condições fossem obedecidas, as compras virtuais não ocorreriam, ou seja, há que se ter uma expectativa positiva em relação ao papel que cada um exerce ao longo de um processo, aparentemente simples, mas eivado de complexidades. Você já imaginou que com a democracia acontece o mesmo? Não que ela seja uma operação de compra e venda – embora não seja incomum o clientelismo em alguns regimes democráticos – mas por ela envolver, necessariamente, um acordo entre os participantes em torno de suas regras de funcionamento – tal como ocorre nas operações financeiras – e uma expectativa positiva em relação ao papel a ser cumprido pelos candidatos, eleitores e pelas instituições mantenedoras dos processos eleitorais, bases fundamentais dos regimes democráticos. Em ambos os processos, deve haver mecanismos de controle e punição, caso um dos entes envolvidos desrespeite as regras previstas, tanto para as compras virtuais, quanto para os processos eleitorais. Tais garantias produzem um ambiente de confiança, que a despeito de eventuais riscos, nelas nos fundamentamos, uma vez que os benefícios são maiores que os custos que podem advir de sua ausência. Trata-se de um pacto regulado no qual se acredita que a ruptura das regras possa gerar uma maior perda do que ganho para o usurpador. É este pacto que garante as relações comerciais virtuais e, também, por comparação, os processos eleitorais.
Foi esse sistema de confiança e aposta na democracia brasileira que nos levou a instituir em 2002 o voto eletrônico. E foi a desconfiança em relação à lisura do mesmo processo que levou o então deputado Jair Bolsonaro, em 2015, a propor a volta do voto impresso. A questão ainda não está decidida, uma vez que tramita no Congresso um projeto com este fim. Seu argumento principal é que o voto eletrônico permite a fraude eleitoral, discurso recentemente reforçado pelos derrotados das últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos.
A desconfiança em relação aos processos eleitorais não é novidade no Brasil, em que pesem os esforços contínuos na promoção de mecanismos a garantir o que se conhecia como “a verdade das urnas”, expressão difundida largamente durante a Primeira República brasileira (1889-1930), que serve como referência de um período em que as fraudes eleitorais eram abusivas e os mecanismos de controle frágeis. É sobre este momento que falaremos, uma vez que as remissões à nossa primeira experiência republicana têm sido constantes nos dias atuais.
O processo eleitoral nos primórdios da República
Para compreendermos as fraudes em nossa “velha república” faz-se necessário sintetizarmos em poucas linhas como funcionava o sistema eleitoral no período. Desde a Proclamação da República, as eleições se tornaram diretas em todos os níveis; a proibição do voto feminino e do voto do analfabeto foi mantida, embora o texto constitucional não impedisse de forma explícita o voto das mulheres, mas o pressupunha com base na cultura patriarcal em vigor. Dessa forma, passaram a ser eleitores os homens, alfabetizados e maiores de 21 anos, independente de renda. O processo eleitoral era longo e complexo e englobava pelo menos quatro fases sucessivas: alistamento dos eleitores, eleição, apuração e diplomação, tal como hoje. A diferença é que não havia uma Justiça Eleitoral (criada só em 1932) para coordenar todas as operações envolvidas, o que tornava os poderes executivo e legislativo – bem mais estruturados que o poder judiciário na ocasião – responsáveis pela condução dos trâmites de sua própria renovação, o que, por si só, se constituía em uma distorção.
Atualmente, cabe ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) coordenar todo o processo. Como órgão do Poder Judiciário – não eleito diretamente pelo povo – ele possui mais isenção para conduzir os processos de renovação dos outros poderes, cuja composição se dá pela via eleitoral. As quatro fases do processo eleitoral antes aludidas funcionavam à semelhança de uma filtragem, por meio da qual o grande número de pretendentes era excluído em benefício dos poucos que teriam seus cargos confirmados no processo de diplomação, conhecido na época como o de “verificação de poderes”.
Como sabemos, a República foi formatada com base na autonomia política e financeira dos estados. O federalismo acabou por se constituir no equivalente institucional de divisionismos regionais existentes há muito no país. O modelo institucional configurado no que hoje conhecemos como “federalismo oligárquico” se organizou politicamente por meio de partidos estaduais, responsáveis pela gestão de bancadas regionais, que atuavam no Parlamento com base em interesses de clã – como muito bem diagnosticou, anos mais tarde, o intelectual autoritário Oliveira Vianna – o que prejudicou a composição de um sentimento nacional a unificar os interesses dos brasileiros.
Destaca-se que os processos eleitorais eram pouco institucionalizados, a despeito da redação de inúmeros códigos eleitorais, o que contribuía para que as fraudes ocorressem. A título de exemplo, do alto grau de improvisação do processo, as eleições presidenciais de 1906, que elegeram Afonso Pena (1906-1909), ocorreram em pleno sábado de carnaval.[1] As seções eleitorais poderiam funcionar em residências privadas; os eleitores poderiam trazer de casa as cédulas já preenchidas e em alguns momentos, se votava a descoberto, ou seja, a privacidade da escolha não estava garantida. Como o voto era facultativo, o nível de abstenção era muito alto, o que nos leva a supor que o maior empenho dos candidatos era o de levar o eleitor às urnas e não propriamente o de controlar o seu voto, fato mais que garantido. Podia-se votar em qualquer nome, mesmo que não fosse candidato e havia candidaturas não vinculadas a partidos políticos, ou seja, independentes. Nosso renomado jurista Rui Barbosa, por exemplo, recebeu votos em todas as eleições presidenciais, mesmo após a sua morte, o que deve ter-lhe conferido algumas alegrias no céu dos liberais convictos. O processo de apuração era igualmente pouco institucionalizado, bem como o transporte das atas e cédulas. Um dos fatores que levaram os mineiros a se envolver na Revolução de 1930 tem a ver com o desaparecimento de atas eleitorais no trajeto entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, o que impediu a diplomação de deputados varguistas da bancada mineira.
Por fim, o complexo sistema de verificação de poderes envolvia a análise de toda a documentação eleitoral com o fim de diplomar ou “degolar” o candidato não eleito. Um processo que envolvia políticos, advogados, jornalistas e curiosos, a disputarem as vagas por meio da análise das inúmeras contestações dos resultados eleitorais. Este processo era longo, desgastante e pouco operacional.
Ao longo de todas as fases que compunham os processos eleitorais, a fraude funcionava como um instrumento de disputa e competição, como nos afirma Paolo Ricci e Jaqueline Zuline em seus trabalhos[2]. Tanto a oposição como a situação fraudavam, as minorias e as maiorias. Quanto mais dividida fosse a elite política de um lugar, mas competitiva se tornavam as eleições, mais fraudes eram praticadas e mais contestações surgiam, levando à criação incessante de mecanismos de mediação e resolução de conflitos.
O reconhecimento desse conjunto de problemas levou à formulação de uma plataforma pela “verdade eleitoral”, que reuniu não só oficiais militares sedentos de poder – os tenentes – como intelectuais, políticos, classes médias urbanas e demais setores da sociedade civil, que nos anos de 1920 se tornaram bastante críticos ao sistema político em vigor na República. Este conjunto de descontentes se valeu da fragilidade de nossa nascente democracia para propor soluções alternativas que passavam não pelo seu aperfeiçoamento, mas pela sua extinção. Muitos dos atores políticos que empunhavam as bandeiras reformistas nos anos 1920 foram compor as hostes do Estado Novo (1937-1945), que estabeleceu a primeira ditadura republicana no Brasil. E por que fizeram isso? Não pelo interesse em corrigir as distorções do sistema eleitoral, mas por desconfiarem que o processo não lhes beneficiava, ao encontrar-se fechado para a sua entrada nos espaços de poder, em que pese a existência de bem-intencionados no período.
Por isso, é importante sempre desconfiarmos dos grupos que se mobilizam em torno da crítica constante aos processos eleitorais. Não que eles sejam imunes a erros e distorções, ou mesmo fraudes, e que não careçam de ajustes eventuais. Mas por trás de uma crítica ácida às eleições – como a não aceitação dos resultados das urnas ou acusações de pressupostas fraudes não comprovadas – pode existir a intenção de fragilizar as instituições democráticas, criando uma desconfiança em relação ao seu potencial de garantir de forma justa a livre competição e a renovação dos quadros políticos nacionais. Já vimos essa história. Sempre é bom não repetir o que “deu ruim”.
Notas
[1] VISCARDI, Cláudia M.R. e FIGUEIREDO, Vítor F. Eleições na primeira república: uma abordagem alternativa acerca da participação popular. Locus, Revista de História, v. 25, p. 12-36, 2019.
[2] RICCI, P. e ZULINE, Jaqueline. Partidos, Competição Política e Fraude Eleitoral: A Tônica das Eleições na Primeira República. Revista Dados, vol. 57, n. 2, 2014.
Referências
FIGUEIREDO, Vítor F. Voto e competição política na Primeira república: o caso de Minas Gerais (1889-1930). Curitiba: CRV, 2017;
PINTO, Surama Conde Sá. As siglas da política carioca. In: Só para iniciados. O jogo político na antiga capital Federal. Rio de Janeiro: FAPERJ/MAUAD, 2011.
PORTO, Walter Costa. Eleições presidenciais no Brasil: Primeira República. Brasília: Senado Federal, 2019, p. 115.
SANTOS, Wanderley G. dos. O sistema oligárquico representativo da Primeira República. Revista Dados, Rio de Janeiro, jan-mar, 2013.
VISCARDI, Cláudia M. R. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro. Curitiba: CRV, 2017
Como citar este artigo
VISCARDI, Cláudia M. R. Processos eleitorais e democracia: o voto na Primeira República (Artigo). In: Café História. Publicado em 3 mai de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/processos-eleitorais-e-democracia-o-voto-na-primeira-republica/. ISSN: 2674-59.
Excelente texto! Adorei inclusive o início, na comparação com compra pela Internet! Já passei para meus alunos de Brasil República lerem! Obrigada !
Excelente Matéria!!