Negacionismo do Holocausto

Professor do Instituto de História da UFRJ fala sobre um fenômeno político que aparentemente desafia a lógica e a racionalidade: a negação do holocausto.
7 de outubro de 2014
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Memorial aos Judeus mortos da Europa, Berlim, Alemanha. Foto: Bruno Leal.

Durante os anos 1930 e, especialmente, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o partido e o Estado nazistas empreenderam um processo de marginalização, perseguição e assassinato em massa de milhões de judeus alemães e europeus.

Esse processo contou com importantes recursos ideológicos e materiais para a sua realização. Em termos ideológicos, os nazistas utilizaram-se de um nacionalismo que unia numa síntese mística o racismo e a eugenia, e definia que apenas os indivíduos de origem “ariana” poderiam integrar a comunidade alemã.

Assim, todos aqueles que não cumpriam esses requisitos raciais foram excluídos e perderam a cidadania alemã. Por outro lado, utilizaram-se de todos os recursos materiais do Estado alemão para realizar o objetivo de resolver definitivamente o “problema judaico”, ou seja, eliminar os judeus da Europa, tais como centenas de campos de concentração e de extermínio, milhares de membros da burocracia e agentes policiais e militares do Estado alemão e da famigerada SS (Schutzstaffel), ferrovias, trens, combustível, bem como grandes recursos financeiros.

Assim, os nazistas colocaram em funcionamento uma gigantesca máquina de explorar, triturar e descartar seres humanos, seja através da morte lenta por fome, doenças e exaustão física, seja através da execução sumária por fuzilamento ou asfixia nas câmaras de gás nos campos de concentração/extermínio.

O auge deste processo aconteceu no período entre 1942 e no final da guerra (1945), durante o qual o genocídio foi realizado em escala industrial e com eficiência logística impressionante. Não devemos nos esquecer também que milhares de judeus, prisioneiros de guerra etc. foram usados como escravos em fábricas e obras públicas na Alemanha, produzindo vultosos lucros aos dirigentes da SS e às grandes empresas alemães, muitas das quais existem até hoje.

Os historiadores, sociólogos e outros especialistas acadêmicos vem pesquisando exaustivamente esse processo e têm divergências em vários pontos, tais como o número exato de vítimas (na casa de milhões de pessoas) e quanto à natureza da decisão do início do processo, isto é, se ele foi intencional (“intencionalistas”) ou se estava inserido na própria dinâmica do regime (“funcionalistas”). No entanto, nenhum pesquisador discute se o Holocausto existiu ou não.

Apesar disso, desde poucos anos após a realização deste crime contra a humanidade, pessoas de diferentes nacionalidades vem se dedicando a resgatar a imagem de Hitler e da Alemanha nazista afirmando que o Holocausto não aconteceu e que este, na verdade, seria o produto de uma calúnia criada e disseminada pelos judeus que a usariam como estratégia para realizar seu objetivo de dominar o mundo.

O Negacionismo do Holocausto surgiu, portanto, logo após a Segunda Guerra Mundial, com os livros dos franceses Maurice Bardèche e de Paul Rassinier e do estadunidense Harry Elmer Barnes; e, a partir de 1978, ampliou sua audiência e passou a integrar o debate político tanto nos Estados Unidos quanto na França. Nos Estados Unidos foi então criado o Institute for Historical Review (IHR), uma instituição que, usando um nome que sugere ser uma respeitável instituição acadêmica de historiadores, se dedica sistematicamente a disseminar o ódio aos judeus (antissemitismo) e a teoria do complô judaico, através da negação do Holocausto. Ainda em 1978, na França, o professor de literatura Robert Faurisson passou a ocupar um cargo acadêmico na Universidade de Lyon 2 e então introduziu o tema do negacionismo no espaço universitário e na mídia francesa.

Assim, partir do final dos anos 1970, esse movimento político/ideológico ampliou-se para além de um pequeno círculo de leitores e simpatizantes do fascismo histórico. Nesse processo, confluíram vários fatores, tais como: a) uma crise econômica e social do capitalismo mundial; b) uma crise política e representativa dos partidos políticos tradicionais, tanto à direita quanto à esquerda; c) uma crise política das esquerdas tradicionais, ampliada pelo fim da URSS e do “socialismo real”; d) uma crise dos paradigmas da modernidade e da própria historiografia; e), sobretudo para o que nos interessa aqui, o surgimento de uma nova extrema-direita e o fortalecimento de um elemento ideológico tradicional no Ocidente, a teoria da conspiração (ou complô), como chave explicativa para se entender a sociedade, especialmente após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, ocorridos nos Estados Unidos. Além da confluência destes fatores surgiu então uma nova ferramenta de disseminação, coordenação e financiamento da extrema-direita e dos Negacionistas: a Internet.

O Negacionismo do Holocausto não é uma corrente historiográfica legítima que se dedique a pesquisar criticamente o Holocausto, mas sim um instrumento da ação ideológica de grupos políticos radicais, em sua grande maioria de extrema-direita. Concordamos, assim, com a já extensa historiografia que usa o termo “Negacionistas do Holocausto” para qualificar os autodenominados “Revisionistas do Holocausto”. Os ideólogos do Negacionismo do Holocausto negam ou minimizam os efeitos do Holocausto, e afirmam que o assassinato sistemático de milhões de judeus, ciganos, eslavos etc. é uma mentira criada e mantida pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial em estreita aliança com os judeus sionistas fundadores do Estado de Israel. O Negacionismo do Holocausto é, portanto, o outro lado da moeda do “complô judaico internacional” difundido desde o início do século XX pelo livro “O Protocolo dos Sábios de Sião”.

O complô judaico é, segundo Girardet , uma das três grandes narrativas do complô elaboradas entre o final do século XVIII e início do século XX, quando foi editado pela primeira vez o famigerado “Protocolo dos Sábios de Sião”. Esse livro, forjado pela polícia política do regime czarista, foi rapidamente incorporado como arma de propaganda antissoviética e antibolchevique nos anos 1920 e 1930. Os nacional-socialistas alemães transformam-no numa “prova irrefutável” de que os judeus são uma ameaça mundial ao mundo ocidental e a obra ainda hoje é reeditada em várias línguas e utilizada como uma espúria prova da existência de um suposto complô judaico internacional. Esse livro tornou-se, desde então, peça de propaganda do antissemitismo e, após a Segunda Guerra Mundial, também do antissionismo.

No Brasil, foi traduzido pelo ideólogo integralista Gustavo Barroso e editado nos anos 1930. No final do século XX, a Editora Revisão se dedicou a publicar no Brasil livros negacionistas e a fazer propaganda sistemática do assunto. Seu editor foi processado judicialmente e atualmente a editora não tem mais atividades legais em território brasileiro.

Alguns pesquisadores consideram que, a partir do final do século XX, as teorias conspiratórias (ou complôs) ganharam uma dimensão explicativa cada vez mais ampla, ou seja, os complôs passaram a explicar fenômenos de escala mundial, os chamados mega-complôs, segundo Taguieff, ou super-conspirações, segundo Barkun. A crescente importância da cultura conspiracionista aumentou também a demanda por abordagens mistificadoras da história (pseudo-história)² que frequentemente estão a serviço de ideologias de extrema-direita¹.

Desse modo, a nova extrema-direita, a partir do final do século XX, atualiza essa perspectiva conspiracionista de sua visão de mundo ao articular sua filosofia da história maniqueísta com um típico exemplo de pseudo-história: o Negacionismo do Holocausto. O Negacionismo do Holocausto tornou-se um elemento fundamental para a manutenção das forças de atração que mantém unidos os diferentes grupos e famílias ideológicas da extrema-direita contemporânea e ajuda a definir sua identidade.³

Por mais que se publiquem artigos e livros que denunciam o caráter falso desse livro os crentes da conspiração judaica internacional se recusam a aceitar os argumentos listados pelos historiadores para denunciar a obra. Da mesma, e seguindo a lógica das teorias da conspiração, os defensores e seguidores do Negacionismo do Holocausto rejeitam qualquer análise proposta pelos historiadores profissionais, acusando-os, entre outras coisas, de estarem a serviço dos judeus. Certamente, isso se deve à lógica das teorias conspiratórias que têm quatro princípios básicos: “nada acontece por acidente”, “nada é o que parece”, “tudo está conectado” e “tudo o que acontece é o resultado de vontades ocultas e malignas”.

A forma como as teorias da conspiração entendem o mundo rejeita as análises críticas dos cientistas sociais (sociólogos, historiadores, cientistas políticos etc.), preferindo compreendê-lo como o palco da luta eterna entre as forças do bem contra as forças do mal. Os Negacionistas do Holocausto consideram-se, pois, soldados das forças do bem, denunciando o complô judaico para dominar o mundo que estaria sendo ocultado pela “grande mentira” (Holocausto) que, ao culpar os alemães do crime de genocídio etc., facilitaria a realização de seu próprio projeto (oculto) de dominação mundial.

A cultura conspiracionista está presente de forma arraigada na cultura de massas, através de diversos mitos urbanos, livros e filmes, tais como: o livro (2003) e o filme (2006) “O código da Vinci”, a série televisiva (1993 a 2002) e o filme (1998) “Arquivo X”, filmes como “Teoria da Conspiração” (Conspiracy Theory, 1997) e as teorias conspiratórias elaboradas para explicar o atentado ao World Trade Center etc. Essa disseminação certamente colabora para a utilização do conspiracionismo pela extrema-direita como uma estratégia de disseminação de sua mensagem política entre diferentes setores e classes sociais.

Concluindo, consideramos o Negacionismo do Holocausto é um tema que faz parte do horizonte político contemporâneo e certamente deve ser objeto da historiografia do Tempo Presente. Os historiadores comprometidos com uma historiografia atuante na defesa da democracia e dos direitos humanos não podem deixar de incorporar os temas da pseudo-história e das teorias conspiratórias às suas pesquisas e cursos.

Notas

(1) “(…) o conceito de ideologia pode ser usado para se referir às maneiras como o sentido (significado) serve, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas –- que eu chamarei de ´relações de dominação´. Ideologia, falando de uma maneira mais ampla, é sentido a serviço do poder.” THOMPSON, P. 16

(2) Para uma discussão sobre a pseudo-história ver ALCHIN.

(3) Cf. Burris, Smith & Strahm (p. 221-222) para o caso estadunidense e CAMUS (p. 33) para o caso francês.

Bibliografia

ALLCHIN, Douglas. Pseudohistory as pseudoscience. Science & Education. 13: 179-195, 2004.

BARKUN, Michael. The culture of conspiracy: apocalyptic visions in contemporary America. Berkeley: University of California Press, 2003.

BURRIS, Val, SMITH, Emery, STRAHM, Ann. “White supremacists networks on the Internet”. Sociological Focus, vol. 33, no 2, May 2000.

CAMUS, Jean-Yves. L´extrême droite aujourd´hui. Toulouse: Éditions Milan, 1996

GIRARDET, Raol. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

TAGUIEFF, Pierre-André. L´imaginaire du complot mondial: aspects d´un mythe moderne. Mille et une nuits, 2006.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

Leituras Complementares

CALDEIRA NETO, Odilon. Memória e justiça: o negacionismo e a falsificação da história.

CASTRO, Ricardo F. de. Extrema-direita, pseudohistória e conspiracionismo: o caso do Negacionismo do Holocausto.

MORAES, Luís Edmundo de Souza. O negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o passado.

Como citar este artigo

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. O Negaiconismo do Holocausto (Artigo). In: Café História. Publicado em 7 out de 2014. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/negacionismo-do-holocausto/. ISSN: 2674-5917.

Ricardo Figueiredo de Castro

Professor Associado de História Contemporânea no Instituto de História (IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É filiado ao GT “Direitas, história e memória” e pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (TEMPO) do IH/UFRJ. Tem experiência na área de História Social e Política, com ênfase em Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: História política brasileira do século XX, com ênfase nas esquerdas brasileiras (comunistas, socialistas, trotskistas, principalmente). Trabalha também com a história política e cultural das direitas, com ênfase no Negacionismo do Holocausto e no Conspiracionismo (Conspiracy Theory).

6 Comments Deixe um comentário

  1. O académico judeu, Tony Judt, director do Remarque Institute da Universidade de Nova Iorque, escreveu: “A Shoah [termo hebreu para Holocausto] é frequentemente explorado na América e em Israel para desviar e impedir qualquer crítica a Israel. De facto, o Holocausto dos judeus europeus é, hoje em dia, explorado de três maneiras: Fornece, em particular, aos judeus americanos uma exclusiva ‘identidade de vítima’ retrospectiva; permite a Israel superar qualquer sofrimento de outras nações (e justificar os seus próprios excessos) com a alegação de que a catástrofe judia foi única e incomparável; e (em contradição com as duas primeiras) oferece-se como exemplo de uma metáfora versátil para a maldade – em qualquer altura e onde quer que seja – e ensinado às crianças nas escolas nos Estados Unidos e na Europa sem qualquer referência ao contexto ou à causa. Esta instrumentalização moderna do Holocausto para obter vantagens políticas é eticamente infame e politicamente perigosa.”

  2. Fiquei interessado na pseudo história, de fato não aa conhecia. Recentemente vi um artigo que trazia a notícia de que um negacionista judeu está fazendo parte do Conselho Eleitoral da Venezuela!

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