Programa Mais Médicos: uma breve história documentada 1
Aymée Pérez Isidor em arrozal na comunidade de Vista Alegre (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira. Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-07-002.

Programa Mais Médicos: uma breve história documentada

Coleção com 634 fotografias revela o cotidiano dos profissionais do “Programa Mais Médicos”. Imagens doadas à Casa de Oswaldo Cruz estão em formato digital para consulta on-line e gratuita.
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Um conjunto documental com mais de 600 imagens digitais, sob o título de “Coleção Mais Médicos”, sob a custódia do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (DAD/COC/Fiocruz), representa, nas palavras do fotógrafo Araquém Alcântara, autor do trabalho, um manifesto humanista. Por cerca de um ano, em 2015, Araquém percorreu 38 cidades de 20 estados do Brasil e fez mais de cinco mil registros dos médicos brasileiros e estrangeiros em suas rotinas de atendimento a populações que pouco, ou nunca, haviam estado em contato direto com um médico.

Para além da qualidade técnica e estética, as fotografias da Coleção representam o cotidiano do Programa Mais Médicos (PMM), política de saúde pública instituída pelo Ministério da Saúde (MS) em 2013 [1]. O Programa é um desdobramento da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab) e tem como objetivos, principalmente, o provimento de médicos em municípios pequenos e pobres, regiões longínquas de difícil acesso e periferias de grandes cidades (historicamente desassistidas), o aumento da oferta de cursos de medicina no país e o fortalecimento da atenção básica em saúde.

As 634 imagens digitais que compõem a Coleção foram doadas pelo fotógrafo ao DAD/COC em 2016 e estão disponíveis na Base Arch, repositório on-line que dá acesso a informações sobre milhares de itens do arquivo histórico da Fiocruz (textos, fotografias, filmes, áudios). A Coleção Mais Médicos está organizada em 43 dossiês identificados pelo nome do médico retratado. Eis uma bela fonte para quem deseja conhecer um pouco mais da história que vivemos, a História do Tempo Presente.

Nas fotografias é possível observar a rotina de atendimento aos pacientes, as condições de vida das populações assistidas e parte dos locais visitados por Araquém Alcântara. São “fotos para os arquivos da memória”, destacou o fotógrafo em entrevista sobre o trabalho, publicado em livro em 2015.

A criação do PMM

Em 2011, como consequência da aprovação da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), a atenção básica [2] (chamada também de porta de entrada do SUS) foi alçada à condição de prioridade de governo. A Pnab era fruto de um esforço iniciado em 2003, quando o Ministério da Saúde criou a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) para fortalecer a formação de recursos humanos para o SUS.

A Atenção Básica à Saúde (ABS) é um conceito construído ao longo das últimas cinco décadas em paralelo ao da Atenção Primária à Saúde (APS) [3]. Em resumo, significa garantia de acesso à atenção, promoção e prevenção em saúde. Conforme apontam os jornalistas Elisa Batalha e Adriano de Lavor, é a partir do contato com uma equipe de atenção básica, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), que os usuários são encaminhados, se necessário, para serviços mais complexos. 

Em 2013, o Brasil possuía apenas 1,8 médicos por mil habitantes. Esse índice era menor do que o de países como Argentina (3,2 por mil), Portugal e Espanha (ambos com 4 médicos por mil habitantes). Além disso, o país sofria com a distribuição desigual de médicos por regiões: 22 estados estavam abaixo da média nacional, sendo que havia municípios sem médicos ou enfermeiros.

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Abel Ramírez Fálcon realizando atendimento domiciliar de uma senhor (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira. Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-02-003.

O desafio era claro: levar médicos para o interior e periferias do país, com a devida inserção e qualificação destes profissionais na atenção básica; ampliar o número de cursos de graduação em medicina em Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas; abrir vagas de residência médica em atividades de atenção básica, serviços de urgência e emergência do SUS e medicina de família e comunidade. Era preciso, ainda, ampliar o acesso aos serviços de saúde, diminuir o tempo de espera nos atendimentos e melhorar a infraestrutura e ampliar as UBS.  

O governo federal, a partir desse diagnóstico, atendeu à reivindicação da Frente Nacional de Prefeitos, mediada pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), de universalização da atenção básica. Assim foi instituído o PMM, convertido em lei em outubro de 2013.

Primeira chamada pública

A primeira chamada pública do PMM contou com a adesão de 3.511 municípios, que solicitaram ao MS 15.460 médicos. Na ocasião, embora o Programa tenha priorizado a seleção de médicos brasileiros, apenas 1.096 com registro em Conselhos Regionais de Medicina (CRM) se candidataram e foram contratados. Nos casos em que médicos nacionais não estavam em número suficiente para as vagas disponíveis, intercambistas (médicos formados no exterior) foram convocados para atuar em municípios com dificuldades de contratar e fixar médicos [4].

Foi quando a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a fim de garantir profissionais para as UBS, cooperou tecnicamente com a iniciativa triangulando acordos entre Brasil e Cuba para a vinda do Contingente Internacional de Médicos Especializados em Situações de Desastres e Graves Epidemias Henry Reeve – a Brigada Henry Reeve, nome que homenageia Henry Reeve (1850-1876), norte-americano que lutou pela independência cubana. [5]

A ilha caribenha possui ampla experiência no envio de médicos a outros países para trabalhar em setores de saúde como atenção primária, cirurgias e atendimento de vítimas de desastres naturais. Juntaram-se a eles 522 estrangeiros de várias outras nacionalidades (italianos, argentinos, haitianos, venezuelanos, etc.). Em 12 meses, o Programa recrutou 14.462 médicos (79% cubanos, 16% brasileiros e 5% de outras nacionalidades) atendendo a 93,5% da demanda dos municípios inscritos.

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Gema Andrea Bitencourt em atendimento domiciliar no sertão de Jeremoabo (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-15-005

No âmbito da formação profissional, o primeiro edital do PMM, publicado em outubro de 2013, deu início à etapa de pré-seleção de municípios aptos a abrir cursos de medicina. Em 2014, após a seleção de mantenedoras privadas por meio de nova chamada pública, abriram-se 36 escolas de medicina, totalizando 2.290 novas vagas. Até 2013, as 27 capitais do país concentravam 8.858 vagas em cursos de graduação em medicina, quase o mesmo número que todos os municípios brasileiros juntos (8.612). Em dois anos de Programa, o número de vagas no interior subiu para 10.637.

Em trabalho de campo para avaliação do PMM realizado ao longo de cinco anos, a partir de 2014, uma equipe multidisciplinar coordenada por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) constatou que o Brasil, antes do Mais Médicos, estava longe de atingir o parâmetro recomendado pelo MS (um médico para cada mil habitantes). Apenas 823 municípios atingiam essa meta. Um ano após a implantação do Programa, o percentual aumentou em 20%, chegando a 991 municípios.
Segundo dados do MS, até 2016 o PMM contratou 18.240 médicos para atuar em 4.058 municípios (73% dos municípios brasileiros), promovendo atendimento a populações ribeirinhas na Amazônia, comunidades rurais do semiárido nordestino e quilombolas, assentamentos, como também periferias e morros de grandes cidades. Além disso, enviou 294 médicos para os 34 Distritos Sanitários Indígenas (100% de cobertura), garantindo a presença destes profissionais em todos os Distritos, fato que nunca havia sido possível desde a criação do subsistema de Atenção à Saúde Indígena no SUS.

Até hoje, o Programa é reconhecido como estratégia fundamental para o acesso à saúde de forma universal e equitativa, conforme está preconizado na Constituição Federal de 1988 e deve ser garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 

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“(…)o país sofria com a distribuição desigual de médicos por regiões: 22 estados estavam abaixo da média nacional, sendo que havia municípios sem médicos ou enfermeiros.”

Cristiane d’Avila

“O PMM contribuiu para a efetivação e consolidação dos princípios e diretrizes do SUS e garantiu acesso à saúde, especialmente para as populações mais pobres, municípios pequenos e regiões remotas e longínquas”, concluíram os pesquisadores após percorrerem 32 municípios com 20% ou mais da população em extrema pobreza, selecionados em todas as regiões do Brasil. A partir de bancos de dados do Ministério da Saúde, a pesquisa incluiu a análise do Programa em 5.570 municípios brasileiros.

Foi um período vigoroso da atenção básica no Brasil. Conforme consta do portal do MS, em 2014 o governo federal investiu R$ 20 bilhões na área, sendo R$ 5 bilhões na construção, ampliação e reforma de 26 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas pelos municípios brasileiros.

A Coleção

A Coleção Mais Médicos é o primeiro arquivo sob a custódia do DAD em formato totalmente digital, acessível por completo na internet. Para conferir,  acesse neste link as 634 imagens (role a página para visualizar melhor o material).

São documentos que ilustram a relevância e o impacto do PMM para a assistência à saúde e a qualificação do SUS. Por ser a primeira do gênero no acervo fotográfico do DAD, possibilita novos olhares sobre a história da saúde pública e das políticas públicas de saúde.

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Eliaidys Llorente Borges realizando atendimento domiciliar em um cortiço (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira. Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-12-006.
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Beatriz Torres Pérez em estrada do povoado de Santo Antônio (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira. Fundação Oswaldo Cruz.Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-08-010
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Diosdado Gonzalez Hernandez no distrito de Iguatu (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-10-002
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Médico Abel Del Toro Pereza em embarcação no Rio Negro (2015). Foto: Araquém Âlcantara Pereira. Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. BR RJCOC MM-01-008

“O conjunto se destaca pelo tratamento humanístico do tema, onde médicos, população e paisagens se mesclam. As imagens refletem os significados sociais e humanos que um projeto dessa natureza pode proporcionar a uma população carente” destaca a historiadora Aline Lopes de Lacerda, chefe do Serviço de Arquivo Histórico da COC.

O trabalho do fotógrafo e jornalista Araquém de Alcântara é outro aspecto relevante da Coleção. “De reconhecida atuação em questões ambientais e difusão do patrimônio natural brasileiro, ele empregou seu talento e experiência para retratar os médicos do Programa”, completa a historiadora.  

Notas

[1] O Programa Mais Médicos foi lançado pelo governo federal em 8 de julho de 2013 através de medida provisória convertida na lei 12.871, de 22 de outubro de 2013. 

[2] A Atenção Básica é o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde, desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e gestão qualificada, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em território definido, sobre as quais as equipes assumem responsabilidade sanitária. Leia mais aqui.

[3] Realizada em 1978, a Conferência Internacional de Atenção Primária à Saúde de Alma-Ata, no Cazaquistão, considerou três componentes essenciais como conceitos de atenção primária: saúde para todos, com foco na prevenção, o acesso igualitário e a participação direta da população no meio social como determinante do processo saúde-doença. Conferir: SANTOS et al., 2016.

[4] FRANCO, Thais de A.Vidaurre; PAIVA, Carlos Henrique Assunção. Programa Mais Médicos para o Brasil: textos e documentos de referência reunidos. In: Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. Estação de Trabalho Observatório História e Saúde. Rio de Janeiro, 2016.

[5]A Brigada foi criada em 2005 por Fidel Castro e já esteve presente em 22 países com mais de 7.000 profissionais de saúde, entre médicos e enfermeiros. Atualmente, ajuda no combate à Covid-19 em diversas nações do mundo e concorre ao Prêmio Nobel da Paz 2020. Fonte: https://bit.ly/3gMa2kA

Referências

ALCÂNTARA, Araquém. Mais Médicos. São Paulo: Terrabrasil, 2015. 223 p.

BATALHA Elisa; LAVOR, Adriano de. “Nova Pnab transforma atenção básica em atenção mínima ao reduzir saúde da família e criar cesta limitada de serviços”. Revista Radis, Nº 183, 2017. Disponível aqui.  

FRANCO, Thais de A. Vidaurre; PAIVA, Carlos Henrique Assunção. Programa Mais Médicos para o Brasil: textos e documentos de referência reunidos. In: FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Casa de Oswaldo Cruz. Estação de Trabalho Observatório História e Saúde. Rio de Janeiro, 2016.

SANTOS, João Bosco Feitosa dos et al.Médicos estrangeiros no Brasil: a arte do saber olhar, escutar e tocar.Saude soc. [online]. 2016, vol.25, n.4, pp.1003-1016. ISSN 1984-0470. 

SANTOS, Wallace Dos et al. Avaliação do Programa Mais Médicos: relato de experiência. Saúde debate,  Rio de Janeiro ,  v. 43, n. 120, p. 256-268,  Mar.  2019.   Disponível aqui.  

Como citar este artigo

D’AVILA, Cristiane. Programa Mais Médicos: uma breve história documentada (Artigo). In: Café História. Publicado em 24 ago. de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/uma-historia-do-programa-mais-medicos/. ISSN: 2674-59.

Cristiane d’Avila

Jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História das Ciências e da Saúde.

7 Comments Deixe um comentário

  1. Pena que MM virou politicagem e o Sr Bolsonaro terminou com um programa que vinha dando certo. Se é contra cubanos, beleza tudo bem! Mas acabar com um programa desse porte tendo 10 mil médicos BRASILEIROS que se formaram no exterior e hoje se encontram trabalhando em ofícios que não tem aptidão ou que não estudou para exercer tal função, é arrepiante.

  2. Parabens pela reportagem. Sou brasileiro trabalho no programa mais medicos e realmente este programa levou saude a gente muito pobre e do interior. Pena que a sra so lembrou dos cubanos… existem brasileiros formado no exterior aos montes trabalhando com muito carinho no programa também.

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