“1976” e “O Conde”: a ditadura chilena em dois filmes

O dia onze de setembro de 2023 marcou os cinquenta anos do golpe de estado no Chile, no qual o presidente Salvador Allende morreu e tomou o poder Augusto Pinochet. A data foi lembrada no mundo inteiro, para que um golpe covarde como aquele não se repita. Por isso, não é de se espantar que a efeméride tenha inspirado os cineastas. Na Netflix, podemos encontrar dois filmes deste ano, com escolhas narrativas e estéticas bastante distintas, sobre a ditadura no Chile: “1976” e “O Conde”.
27 de setembro de 2023
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Terror satírico com Pinochet tem crítica política. Foto: reprodução.

1976: a gente comum na ditadura

Carmen (Aline Küppenheim) só queria reformar a casa. Nós a encontramos pela primeira vez numa loja de tintas, alheia a tudo. Os gritos de uma mulher interrompem a tranquilidade da cena, mas isso não abala Carmen. Nem a menção de que uma família que ela conhecia saiu do país, ao que ela reage apenas comentando que a casa em que moravam era bonita. Carmen fuma despreocupada um cigarro enquanto ouve no rádio que assuntos políticos estão proibidos. Mas, ao mesmo tempo, o filme estabelece que Carmen é uma mulher benevolente, ajudando meninas que fizeram aborto ilegalmente e tratando bem os funcionários que estão trabalhando em sua casa.

Carmen é mãe e avó, além de uma mulher típica da classe média. Sua ocupação, obtida graças à intervenção do padre Sánchez (Hugo Medina), é ler contos para pessoas com deficiência visual. E é também por intermédio do amigo padre que ela começa a cuidar de Elías (Nicolás Sepúlveda), um ex-presidiário que se encontra ferido e acamado. Aparentemente alheia ao contexto histórico, mas praticante da desobediência civil desde sempre, Carmen aceita ser uma ponte entre Elías e seus amigos da resistência.

O padre Sánchez conta que não é a primeira vez que ele esconde perseguidos pela ditadura. Da primeira vez, ele ajudou um casal a escapar, mas eles apareceram mortos na Argentina tempos depois, algo que o padre considera sua culpa. Esta função de esconder fugitivos me fez lembrar o caso de Anne Frank, transportado para os cinemas em 1959 num filme cheio de suspense. Praticar essa desobediência civil é suficiente para passar a viver com o coração na mão, e é isso que acontece com nossa heroína Carmen.

Uma amiga de Carmen diz que os chilenos têm mentalidade medíocre; por isso, precisam ser governados por um líder forte. É a mesma mulher que afirma que o hospital em que o marido de Carmen, Miguel, trabalha está infestado de comunistas. Não existe governo ditatorial sem que haja apoio de parte da população, nem que seja de uma minoria; por isso, vem se convencionando chamar as ditaduras que acometeram a América Latina em meados do século XX de “ditadura civil-militar”.

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Filme sobre a ditadura chilena está disponível na Netflix Brasil. Foto: reprodução.

“1976”, co-produção chilena-argentina-catariana, empalidece se comparado a um filme argentino recente sobre a própria ditadura: “Argentina, 1985”, que inclusive foi indicado ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira este ano. Este é mais um exemplo da Argentina olhando para seu próprio passado e contando sua história através do cinema, não importa o quão sórdida esta história é – tradição que teve no oscarizado “A História Oficial” (1985) um de seus pontos altos.

Estabelecido desde o início como sendo um filme de suspense com paleta de cores predominantemente em tons pastel, “1976” é o longa-metragem de estreia da diretora Manuela Martelli e lhe garantiu o Prêmio Platino del Cine Iberoamericano na categoria Melhor Filme de Estreia. Atrás das câmeras, destaca-se o trabalho da compositora brasileira Mariá Portugal.

Carmen não consegue voltar totalmente à normalidade após conhecer Elías, embora ela tente. “A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”, frase de Albert Einstein, cai como uma luva no caso. De acordo com dados oficiais, quase 1500 pessoas contrárias à ditadura no Chile desapareceram, 40 mil foram torturadas e quase duas mil morreram sob tortura. Gente comum, como nós, como Carmen, que nunca mais será a mesma. Nem ela, nem o Chile.

O Conde: cobiça e derramamento de sangue

“O Conde” conta a história de Claude Pinoche, que nasceu no século XVIII e, covardemente, desertou seu rei Luís XVI quando eclodiu a Revolução Francesa. Após ver o rei a quem devia lealdade ser decapitado, Pinoche forjou a própria morte e se dedicou, nos séculos seguintes, a lutar contra as revoluções que desafiavam o status quo e exigiam liberdade para povos subjugados. Em 1935, ele ressurgiu sob o nome de Augusto Pinochet (Jaime Vadell), subindo ao poder no Chile, onde permaneceu por quatro décadas, até novamente forjar sua morte. Ele passa os dias eternos que lhe restam batendo corações ainda pulsantes no liquidificador, corações estes que tira de vítimas incautas e aleatórias.

Os crimes que ocorrem em Santiago chamam a atenção dos cinco filhos de Pinochet, que não duvidam que o pai está por trás da carnificina. Eles o reencontram em sua mansão, onde descobrem que são herdeiros de uma boa soma. Para quantificar a herança, contratam uma contadora que, na verdade é uma freira exorcista, Carmen (Paula Luchsinger). A grande questão assola os herdeiros: como poderão herdar a fortuna se o pai é um vampiro imortal?

Em tom jocoso, a narração em inglês nos conta como Pinochet impediu uma “infestação bolchevique” e trouxe prosperidade e progresso para o Chile. É o discurso repetido tantas vezes por apoiadores do regime que, como na ditadura brasileira, porém em grau mais intenso, apontou uma suposta “ameaça vermelha” como inimigo a ser combatido com pulso forte pelo governo ditatorial. A convicção com que a frase é dita no filme faz todo o sentido, uma vez que se revela quem é a narradora.

Carmen diz a um dos filhos de Pinochet que houve um escândalo de corrupção, solucionado com a ameaça de um novo golpe de estado, ao que o homem lhe responde que o pai era corrupto, mas não tão corrupto quanto outros, como Ferdinand Marcos, ditador filipino. Carmen nota que tal frase só poderia ter saído da boca de um verdadeiro vilão. Num filme em que quase todos são vilões, é a cobiça o pecado principal. Num contexto histórico como o da ditadura chilena, houve muita cobiça, em especial por parte das classes mais abastadas, que ficaram ainda mais ricas, enquanto as classes mais baixas se afundavam na pobreza e desemprego.

Se “1976” se destaca por suas cores, o que salta aos olhos desde o começo de “O Conde” é a fotografia em preto e branco. Escolha de outras produções de prestígio da Netflix – como “Roma” de Cuarón e “Mank”, ganhador de dois Oscars – a fotografia em preto e branco, num cinema predominantemente colorido, sempre foi questão de estilo. Aqui usada para evocar filmes clássicos de terror com vampiros, é subterfúgio muito bem aplicado, graças ao talento do diretor de fotografia Edward Lachman, que vem de filmes como “Carol” (2015) e “As Virgens Suicidas” (1999).

Com o cabelo curtinho e olhos grandes e expressivos, Carmen nos faz recordar Renée Falconetti no clássico “O Martírio de Joana D’Arc” (1928), de Carl Theodor Dreyer. A atriz que interpreta Carmen, Paula Luchsinger, havia participado do filme anterior de Larraín, “Ema”, de 2019, e é mais conhecida no Chile por suas interpretações na televisão.

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Filme está disponível no Netflix. Foto: reprodução

O filme foi escrito, dirigido e co-produzido por Pablo Larraín, que tem no currículo uma trilogia sobre a ditadura no Chile: “Tony Manero” (2008), “Post Mortem” (2019) e “No” (2012). Os pais de Larraín foram apoiadores da ditadura de Pinochet – seu pai foi inclusive líder de um partido de extrema-direita -, passado familiar que o diretor rechaça, e em muitas ocasiões ele foi criticado por explorar, para se promover, um passado que não o vitimou nem vitimou pessoas próximas. “Disseram que estava vendendo a história chilena e obtendo lucros do nosso doloroso passado”, confirma Larraín em entrevista.

Em outra entrevista, Larraín afirma que fez de “O Conde” uma sátira para evitar empatia com o personagem principal. Não é incomum que o público torça para o vampiro do filme – e não vem sendo incomum que o povo adore golpistas. Mesmo assim, a identidade de Pinochet no filme serve mais como um “gimmick” – um truque cinematográfico – e um chamariz para que interessados por filmes políticos, mas não por filmes de terror, vejam a película. O comentário político é bem superficial, corroborando com a ideia de que Larraín desaparece por trás de seus filmes – o que nem sempre é bom.

Ligações

A Carmen protagonista de “1976” é uma mulher comum que se envolve sem querer no redemoinho de um momento histórico. A Carmen coadjuvante de “O Conde” é uma mulher com uma missão, que se vê envolvida numa disputa causada por cobiça e luxúria. A coincidência do nome das personagens nos permite esta comparação, com a conclusão óbvia de que devemos, hoje e sempre, dizer para as ditaduras: “nunca mais”. Ou como se diz no Chile: “nem perdão, nem esquecimento”.

Mesmo assim, o filme se justifica. Cerca de um terço dos chilenos crê que o golpe em Allende foi necessário, e 20% acreditam que Pinochet foi um dos melhores governantes do século passado. Quem apoiou um golpe o apoiaria de novo. Perto do seu final, “O Conde” toma sua direção definitiva e nos avisa: a extrema-direita golpista, assim como os vampiros, sempre está pronta para ressurgir e promover uma carnificina.

Letícia Magalhães

Historiadora e crítica de cinema. Contribuiu com sites como Filmes e Games e Leia Literatura. Mantém desde 2010 o blog Crítica Retrô, sobre filmes clássicos e antigos, e contribui para os sites Revista Eletrônica Ambrosia e Cine Suffragette, no qual é também editora. Foi vencedora do prêmio do Collegium do Festival de Cinema Mudo de Pordenone em 2021, escrevendo sobre o que mais gosta: cinema e história.

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